quarta-feira, 26 de junho de 2013
ovo da serpente
no ornato no alpendre no beiral
estamos na casinha
na proporção
no silêncio
mas o rumor impera
o sangue cresce
a serpente nasce
Pedro Saborino
quarta-feira, 12 de junho de 2013
navegação do corpo
para a Graça Barroso
do rosto ao interior o músculo vibra tenso, contíguo
em viagem dolorosa da carne por diversas paisagens
por luzes que do nada se refazem e definem o flanco
o ventre reclinado
aberto
o corpo flui
de dentro
sobre um nada informe
da pele inexplicada brotam ramos
talvez gestos
o olhar abre-se à luz impiedosa do sol
e a palavra
finalmente
explode no silêncio
como o belo é assim o princípio do ser
a fonte o seu espaço, o fogo a sua voraz destruição
no imperfeito desvendamos por fim o sagrado
Pedro Saborino
in Marginalia 2013
terça-feira, 28 de maio de 2013
Esboço de poema
Homenagem a Herberto Hélder, no dia da publicação de Servidões
aí estás, despojado de ti
e sobra-te a dor
o teu exílio
sobra-te a luz que estremece nos teus olhos antecedendo o fim
vejo-te
e despeço-me do teu olhar, da tua respiração
os teus dedos agarram-se aos meus dedos
e o teu corpo é agora o meu corpo
neste sangue inútil
Pedro Saborino
sábado, 4 de maio de 2013
voo
voo
homenagem a Ramos Rosa
estou aqui, de pé sobre a rocha, muito perto das aves
do seu voo marítimo, no cabo ocidental onde o vento sibila sobre o tojo
e o falcão vigia a passagem dos grandes barcos migrantes
a minha viagem começa aqui, neste bordo suspenso da gávea
por onde rolam as brumas da primavera e os grandes silêncios do oceano se fazem gemido e carne salgada
aqui, onde eu não tenho corpo e estou assim suspenso no olhar
da morte
em declive sobre o nada
e voo, despeço-me de mim, alcanço a luz
toco-a, íntima e solene, queimando as mãos
Pedro Saborino
quarta-feira, 24 de abril de 2013
assim
assim
homenagem a Murilo Mendes
assim vivemos, nas aparas da luz
enquanto as aves exterminam as crias
e as papoilas do campo se consomem em lírica combustão
assim estamos, nesta dor quieta
enquanto a lâmina nos passa de lado a lado, perfurando a fome
assim enterramos o domingo com a sineta fúnebre dos dias
enquanto a peste se insinua pelas portas da cidade
e os rios vão secando em limos vagarosos
prenunciando o fim da musa
assim viajamos nos barcos nocturnos do degredo, em ritos de passagem
Pedro Saborino
quinta-feira, 28 de março de 2013
Orestéia
O que depois aconteceu não pude ver
e mesmo que pudesse não diria.
Agamémnon (Trilogia Orestéia) Ésquilo
Orestéia
onde está a mão divina no reino do visível?
o sangue que a mancha é dos simples mortais
ou dos próprios deuses?
os sinais revelam-se aos sentidos
como o olhar define o escuro perante a luz
ou os dedos modelam a forma do vazio
mas só Cassandra desvenda a face da verdadeira morte
a sua visão terrível
das Fúrias vigilantes
da longínqua cidade onde ecoam os heróis perdidos
nos seus braços tomará
como os deuses, a própria servidão
Pedro Saborino
domingo, 17 de março de 2013
Gilgamesh
às portas do oeste chega o viajante
busca no interior da vulcânica mina o tambor mágico
mas nada o salva da morte
do seu poder profundo
Enkidu não voltará
e o rei está só
longe fica a floresta dos cedros
o mágico luar, o voo redondo da ave
no vale enfrenta o leão, carrega depois a sua pele vestida sobre o tronco
até ao limiar do oceano
onde está Dilmun,o paraíso por onde sussurra a brisa da eternidade
em vã procura
dentro dos muros de Uruk
agora é chorado pelo povo
a morte não é trágica
só os deuses mortais são trágicos
Pedro Saborino
quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013
Os meus poetas
Trabalho na água que a voz movimentou
Gerando os sismos: e sou
O húmus, o barro nas margens
O homem que nunca compreendeu
Daniel Faria in Poesia, Assírio e Alvim 2012
divido-me entre o grito incompleto da matéria
e o murmúrio do corpo, agora extinto
estou entre o fogo inominável e o desejo,
estou entre a criação e o anjo vigilante
na ombreira da porta , no seu olhar definitivo de barqueiro
do vasto rio do esquecimento
poderia dizer estou aqui
toquem-me as mãos do real, prendam-me os dedos dos ramos que crescem das suas raízes por dentro de mim
poderia dizer vou desesperadamente
como o vento tardio ou a queda do animal ferido na sua viagem inútil
poderia inventar a luz do rosto perfeito
do seu compasso, do seu verso , da sua grandiosa madrugada,
do seu poder,
poderia clamar ressuscitei dos meus próprios mortos
poderia negar tudo , todas as minhas compaixões, todos os meus medos
poderia ser outro
mas a substância das coisas está em mim
tudo se consuma no meu sangue
Pedro Saborino
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