domingo, 27 de maio de 2012

Houla



aqui

desenhamos o círculo da infâmia

atam-nos os braços espíritos da fome



aqui cavalgamos a maldade infinita

por ressequidos desertos

sem amanhecer



dai-nos estes lábios roxos

e o furor do sangue

para que nada nos reste

além da verdadeira morte

quinta-feira, 24 de maio de 2012

Gaiteiro



Gaiteiro

para a Né Ladeiras e Galandum Galundaina



descubro-te o canto entre pedras e céu

trinos e lamentos , gritos e antigos sons

que do fole revivem como guerreiras danças

em passos de pastor sobre a esteva pela alba

gaiteiro da vida que me acordas



invento-te o nome, nesta serra , neste olhar

com tambores e ferrinholas

despertas as aves que voam do rebanho

sobre o meu tempo , numa viagem distante

gaiteiro da vida que me acordas



vejo-te na festa como um rei

por entre fogueiras

celebramos contigo no fole e na palheta

o vinho novo o sonho que renasce

gaiteiro da vida que me acordas



Pedro Saborino



sábado, 12 de maio de 2012

o que é perder ?


(...) E, no entanto, eu escrevo…



As vidas que, durante a batalha, se vão perder, enquanto chamas vivas, iluminaram quem, o quê? A mim?


E que pujança estética sem nome tiveram (ou estão tendo?), esses homens e mulheres?


Que linha do tempo foi ali quebrada?, mas não partida, e lhes envolve o ser?


Que nuvem continua transitando? Por que será que no horizonte da história se ouvem gemidos, o gotejar contínuo de acções inacabadas?


(Maria Gabriela Llansol in Finita. Diário 2. 2ª ed. Assírio & Alvim, 2005, pp. 21-22; 46-47)

 


inquieto o tempo desdobra

nas mãos os múltiplos silêncios

da valsa

imperfeita

o vagar da noite que arde sobre o rio

palavra a palavra

até ao mar final da memória

pois nada sabemos

de ti


Pedro Saborino






quinta-feira, 3 de maio de 2012

do tempo







do tempo


                                            para o Horácio Espalha Jr. e para Moncorvo



muitas coisas se passaram dentro dos meus versos

alongou-se, talvez demais, o espaço entre as sílabas

o que prenunciava a mudança

e eu estava ali nesse silêncio compacto e viscoso

da espera


nada definitivamente nada fluía de tal recanto

digamos desse indefinido pedaço de memória

como uma mera imagem das minhas inquietações



aí então, tal faca no vazio, se revelaram os diversos tempos

o tempo inicial e informe do princípio

milhões de milhões de anos de poeira sideral

até ao tempo do meu passo sobre este mesmo chão

ou o meu tempo interior, sem tempo

do tempo medido do meu gesto

ao tempo sem tempo nenhum da minha ideia de tempo

do universo que flui de mim

ao segundo infinitesimal da ideia



passado presente e futuro são apenas construções

como o tempo da minha vila se constrói naquele fontanário da praça

que eu vejo

mas podia nem sequer ver

podia apenas imaginar

como as pedras sobrepostas de uma escada

ou o amanhecer através da janela envidraçada deste quarto sobre a serra



aí então a minha memória poderia descobrir o tempo definitivo

o tempo essencial