segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Zona de conforto, disse ele



O emigrante não sai do seu país de livre vontade . Sai porque não encontra aí condições para se desenvolver satisfatoriamente como ser livre e senhor do seu próprio destino, ou porque não se conforma com o sistema de vida, ou porque não consegue aí realizar-se a nível profissional, ou porque é perseguido ideologicamente, ou porque não tem meios para se sustentar ou à sua família, ou ainda por uma série de razões. Não sai mesmo é de livre vontade para se passear num meio muitas vezes hostil e no qual a adaptação é quase sempre difícil e traumática.
Nos anos 60 vários factores se conjugaram para que se tivesse verificado uma vaga maciça de emigração de portugueses não só para países europeus como a França e a Alemanha ( esta numa fase imparável de reconstrução pós-guerra- não esqueçamos que estávamos apenas a escassos 15 anos do fim do grande conflito mundial), como também para a Suiça, Bélgica e ainda para os Estados Unidos, Venezuela, Brasil, África do Sul e até para Angola e Moçambique apesar da guerra colonial estar já em curso. A conjuntura económica já então desfavorável, associada a uma feroz repressão política do regime salazarista e a um nível de vida genericamente muito pobre , ou ainda a recusa de pactuar com o regime fascista vigente, foram as causas mais importantes deste êxodo, quantas vezes em condições dramáticas e degradantes para a condição humana.
Hoje, com uma taxa de desemprego seguramente acima dos 12 ou 13%, com uma estrutura empresarial altamente fragilizada, com um investimento nulo, com uma sobrecarga fiscal asfixiante, inicia-se uma emigração diferente da dos anos 60 mas não menos empobrecedora para o país. Trata-se em muitos casos de jovens qualificados, quadros, investigadores, técnicos, professores, trata-se ainda de trabalhadores que oferecem a sua força de trabalho onde lhe garantam o seu sustento e o da sua família. Trata-se em suma de portugueses que não encontram na sua terra condições de sobrevivência condigna. Como afinal os seus concidadãos dos anos 60.
Não sei se é isto que o sr. Secretário de Estado da Juventude queria dizer quando há pouco incentivava os jovens portugueses à emigração.
Nem sei afinal qual a "zona de conforto" a que se referia.
É que já estamos todos habituados ao desconforto da mudança, sr. Secretário de Estado.
Historicamente.

domingo, 30 de outubro de 2011

Fábula sem moral nenhuma




Era uma vez um reino no qual há muito o povo vivia encarcerado por ordem de um velho senhor que usava botas e vivia num palácio bafiento onde os únicos ruídos eram os dos ratos. O povo era muito infeliz e pobre . O velho senhor obrigava os seus súbditos a trabalhar para subsistir sem lhes dar quase nada em troca e mandava-lhes os filhos para uma guerra muito longe da sua terra. Muitos iam para fora para poder ganhar o sustento. Viviam no pavor de dizer qualquer coisa que não lhe agradasse porque eram logo denunciados por uns senhores esquálidos de fato preto que os colocavam numa cela só para eles e onde levavam pancada e passavam ainda mais fome. Mesmo assim alguns conseguiram juntar-se e, logo que o senhor que usava botas morreu, foram ao palácio e da janela mandaram abrir as portas das suas prisões e voltar todos aqueles que estavam na guerra distante.
Com isto o povo se achou muito diferente e começou a pensar em construir um futuro mais justo para que todos pudessem trabalhar, ler e aprender para serem finalmente felizes. Tanto mais que noutros reinos próximos o haviam já conseguido e pareciam ser todos muito felizes. Assim passaram todos a receber mais dinheiro pelo seu trabalho, a ter melhor assistência médica, a ter melhores estradas, a ter melhores casas para viver, a mandar os filhos para a universidade, a passar férias longe do reino, enfim, começaram a viver mais confiantes e a pensar que tal prosperidade nunca ia ter fim.
Entretanto os senhores que mandavam no reino também achavam que isso era bom para eles, porque assim tinham muito mais votos nas eleições e podiam viver descansados. Por outro lado os senhores que tinham guardado nos cofres dos bancos o dinheiro do povo também achavam que isso era bom para eles porque por um lado faziam grandes negócios com os senhores que mandavam no reino e por outro lado iam tirando do povo uma boa parte do que o povo recebia dos senhores que mandavam no reino.
Por outro lado ainda, para os outros reinos de fora também era bom que assim fosse, porque desta forma também emprestavam dinheiro e vendiam coisas que eles produziam a mais e que precisavam de vender.
Um dia o senhor das contas do reino foi ao cofre e achou-o quase vazio. Ficou muito alarmado e falou com os senhores dos cofres dos outros reinos à volta para saber se lhe emprestavam algum dinheiro, mas a resposta foi que também estavam com o mesmo problema e não havia dinheiro.
Então o senhor das contas do reino voltou-se para o povo e disse que já não lhe podia pagar mais, que era um problema de todos os reinos e que o povo tinha de lhe dar tudo o que tinha e ainda que os seus filhos, netos e bisnetos tinham que lhe dar tudo o que viessem a ter no futuro.
E o povo ficou muito triste. Triste e enfurecido. E disse: Nunca mais vamos acreditar nos senhores que mandam no reino. Daqui para diante vamos ser nós a mandar.
Só que esperaram em vão. E entretanto voltaram a viver como no tempo do senhor que usava botas.

sexta-feira, 28 de outubro de 2011

O quinto império







E assim, passados os quatro
Tempos do ser que sonhou,
A terra será theatro
Do dia claro, que no atro
Da erma noite começou.

Grecia, Roma, Cristandade,
Europa- os quatro se vão
Para onde vae toda edade.
Quem vem viver a verdade
Que morreu Dom Sebastião?~


Mensagem , Fernando Pessoa


vem sobre nós do tempo antigo a longa memória
o discurso do vento que o horizonte alarga e define
luz e treva no punho da manhã

a tua voz clama da bruma já não o desejado
mas o corpo abrupto
o rumor que do teu sangue flui vasto e urgente
no mar austral da viagem
a navegação do teu rosto
desde o princípio

aqui estamos pois povo infindo
na claridade do novo despertar
somos mais do que o futuro
viajamos além do nosso tempo ‘







terça-feira, 18 de outubro de 2011

O garrote

Portugal é um pais pequeno. Pequeno e pobre. Portugal é dos países da OCDE com maiores desigualdades.A despesa e a dívida pública em percentagem do PIB são actualmente insustentáveis. Os investimentos públicos têm sido em regra ruinosos – vd. o caso das PPP’s. Os acumulados de dívida das empresas públicas, dos transportes e das estradas são astronómicos. As despesas de saúde são incontroladas e crescentes. A indústria exportadora é desapoiada e manifestamente não consolidada. Há excesso de construção e houve muita especulação imobiliária com o apoio solícito dos bancos, que agora se debatem com um incumprimento gigantesco e um parque de imóveis impossível de negociar. Os níveis de produtividade são baixos. O endividamento público assustador. O externo ainda mais. Vivemos há mais de dez anos em plena crise estrutural, de apatia e de paragem económica, que começou em Guterres, continuou com Durão Barroso e Santana. Os governos de Sócrates tentaram um surto de expansão que esbarrou em inúmeras debilidades estruturais e numa oposição meramente bota-abaixista. A intervenção da troika, em desespero de causa, foi a machadada final na nossa economia . O funeral da justiça social. O fim da utopia de um Estado justo e defensor do bem-estar dos cidadãos . Talvez por culpa de uma obscura concertação político-financeira mundial, de blocos económicos pouco claros, de manobras especulativas dos mercados. Talvez por culpa de uma UE que não se assume como união política e mal se conforma a uma união económica, em sucessivas indecisões, avanços e recuos. Talvez por culpa de todos nós portugueses, que perante o mundo não assumimos a dignidade histórica que temos a obrigação de preservar. E este é o maior dos males. O garrote que nos irá estrangular.

sábado, 15 de outubro de 2011

Indignados?






Enquanto uns milhares por todo o mundo se manifestam contra um complexo sistema que afinal todos nós criámos e alimentamos , numa espiral de necessidades nunca satisfeitas, de riqueza nunca alcançada, de conluio do poder com o dinheiro, de sucessivas negações da liberdade a pretexto da construção de uma sociedade mais próspera e feliz -




morre-se por todo o mundo de fome e de sede, morre-se de doenças que são curáveis com um antibiótico, ou evitáveis com uma vacina, há crianças e adultos que trabalham forçadamente em completa escravidão, violenta-se e mata-se por um prato de comida, mutila-se e estropia-se por preconceito cultural ou lei religiosa, denega-se ou simplesmente se subverte a justiça, desvaloriza-se a vida , trucida-se e encarcera-se por diferença ideológica, ou género, ou crença,



institui-se o terror como arma, flagelo ou castigo divino, faz-se da indiferença o quotidiano, a ignorância é um mal inevitável, o conhecimento um direito das sociedades ricas, a pobreza um desagradável incómodo.




O mundo dito civilizado transformou-se numa trágica taverna argentária. A liberdade soçobra. O que está em questão é a dignidade humana . Trata-se de uma luta que não deveríamos perder.








Foto: criança africana com noma, doença frequente na África sub-saariana. Ocorre em crianças desnutridas . É mortal se não for tratada. É tratável com antibióticos e cirurgia reconstrutiva. Ironicamente o restaurante mais caro do mundo, na Dinamarca, tem o mesmo nome.












terça-feira, 11 de outubro de 2011

Retrato

Foto de Paulo Patoleia in Rostos Transmontanos












Não vejo o mundo sem os meus olhos, mesmo que tudo mude, ou até deixe de existir

porque eles são os meus olhos da eternidade












o teu rosto pertence a estes montes,
a tua voz sobe do rio e nele flui o percurso
da memória, tal o mundo, tal o discurso
que em mim te nomeia, como se fossem pontes

do passado para o meu peito, agora mais cansado,
mais lento o gesto, mais suave a mão
vem tudo de ti e eu não sabia, tudo repete o que não
pude dizer-te junto de ti , tocando-te o cabelo, sentado

vê agora comigo estes campos – a luz da alva
sobre a névoa descobre os ramos floridos
da amendoeira, é já manhã e os cheiros crescem

húmidos da terra, num antiquíssimo rumor
que só agora desvendo nos teus braços doridos
como se fossem os meus próprios braços que renascem

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

A liturgia da poesia




O Prémio Nobel da Literatura de 2011 foi atribuído a um poeta - Tomas Transtromer , nascido em Estocolmo em 1931 . Desde os 25 anos que publica poesia. Vítima de um acidente vascular cerebral há alguns anos continuou o seu labor poético até à actualidade. É considerado o mais importante poeta sueco dos tempos modernos. Publicado em mais de 30 línguas. Praticamente desconhecido em Portugal , apenas representado numa colectânea de 1981 e citado nalguns blogues de poesia que vão por aí sondando o outro mundo . O que não admira. A poesia em Portugal é ostensivamente ignorada. As editoras aqui apenas crismam os génios preconcebidos. Ou pré-concebidos, enfim como quiserem. Temos as editoras que merecemos e as escolhas que não merecemos. Pequeninas, grotescas e ridiculamente preconceituosas. Como os bolinhos da tia, que ninguém come mas todos elogiam.

A Academia redimiu-se, depois de algumas escolhas menos boas. A Poesia verdadeira - essa visão premonitória, essa descoberta do apenas imaginável que está para além do real, essa libertação suprema do quotidiano, essa verdade sempre renovada, esse incêndio das palavras que torna a condição humana o único bem em que nos podemos encontrar como seres solidários, essa visão intangível de um mundo mais próximo - essa Poesia está hoje em festa.

Com essa festa me congratulo e me associo com todo o meu profundo entusiasmo.

Amanhã as editoras deste pobre país vão descobrir que a Poesia afinal existe.