quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

Para Pablo Neruda




Geração do poema






Não estás morto,não estás morto.


Estás apenas dormindo.


Como dormem as flores


quando o sol se reclina.






o poema está aí onde tu o inventas
e a tua mão subverte esse tempo indefinível que lateja
na antecipação do prazer
como o sexo

está aí o poema, só teu, em nudez total
depois move-se, sempre inacabado, suplicando na dor do corpo
e rasga-te
no movimento
esse instante que ninguém viu ou sentiu ou respirou senão tu
profano aprendiz da agonia da palavra exacta
da revelação
do rio profundo da matéria

está aí o poema, possuindo-te já e não possuído
tomando-te o suor incendiado na vigília que entra pela manhã
calcinando-te no fogo interior da sua construção
está aí o poema
entre o sim e não, o amor e a morte, o anjo e a mutilação
o nada e a revelação
está aí senhor e servo da tua criatura
em mudança permanente




Pedro Saborino


quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

Para T. S. Eliot


(…) e o fim de toda a nossa exploração
será chegar aonde partimos
e conhecer esse lugar pela primeira vez

T.S.Eliot, Quatro quartetos



Nostos

assim, entre o ser e a destruição dos dias, ocupo-me finalmente dos seus escombros
ando por galerias de minas antigas da memória
antecipando a grandiosidade do fogo,
metalúrgico sinal da origem

estou preso nas entranhas do verbo
evoco os lugares que julguei serem meus,
entre mim e outro, indecifrável,
diria todos os outros nos quais já não consigo ver-me
mas que fui eu e eu conheci
e me descobriram nesses lugares

lugares talvez verdadeiros
talvez apenas lugares através dos meus sentidos

descrevo-me pois viajante de retorno à idade das vozes primitivas
ao refúgio no qual a inquietação se avoluma
e o olhar desperta
absoluto



Pedro Saborino

quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

Gente comum



(…) o que chamamos o princípio é muitas vezes o fim
e terminar é começar.
É do fim que nós partimos.
T.S. Eliot, in Quatro quartetos



carregaremos sobre os ombros o peso da liberdade
milhões de mortos nos olharão
e o seu sacrifício não será redimido
sem o nosso próprio sacrifício

seremos julgados pelos que vierem depois de nós
pelas nossas omissões
pela nossa ignorância
pela nossa indiferença
pelo nosso egoísmo
pela nossa servidão

nada nos livrará do juízo temível dos mortos
se formos moribundos do futuro

sábado, 10 de dezembro de 2011

teoria geral do conhecimento



(…) e o fim de toda a nossa exploração
será chegar aonde partimos
e conhecer o lugar pela primeira vez

T.S.Eliot. Quatro quartetos


assim, entre o ser e a destruição dos dias, me ocupo dos seus escombros
por galerias de antigas minas
que antecipam a grandiosidade do interior da terra
o seu metalúrgico fogo
estou preso no verbo
invoco a memória dos lugares que achei meus
estou entre mim e o outro indecifrável
diria todos os outros nos quais já não consigo ver-me
mas que eu fui e eu conheci
que me descobriram nesses lugares
talvez verdadeiros
talvez só meus
talvez só lugares

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

exercício barroco sobre a liberdade




tens a liberdade que tomas do teu mundo
a tua viagem é em ti mesmo
do que não queres
do que não te conseguem tirar
do que não te silenciam
ou do que não te matam
morrerás por ti
cobarde e só
se não recusares

o teu corpo aprisiona-te
se o deres ao inquisidor

és senhor da tua luz
e apenas escravo da tua escuridão

quinta-feira, 24 de novembro de 2011

Insurreição


fecho aqui as páginas
que libertam o poder dos nomes
a sua insurreição
(a liberdade é o poder dos nomes que lemos nas páginas abertas)

voltarei
decerto voltarei
não para esta terra servil
mas para a sua luz maior

sábado, 19 de novembro de 2011

Carreira 28







viajo através de ti
cidade
reclinada junto ao rio que te cresce por dentro numa invenção dos movimentos do amor
descrevo-te
sentado no cavalo amarelo e abrem-se recantos
descubro-te as vozes da manhã em praças pequenas rodeadas de janelas com roupa vasos flores grades ferrugentas escadarias de pedra miradouros da luz
gente de distantes lugares
vinda em barcos ancorados no porto fluvial
na esperança adiada do dia maior
da flor
do encanto
do azul




sei que te amo cidade
desesperadamente



mas nesta viagem
sei também que morro contigo

quinta-feira, 17 de novembro de 2011

Fábulas sem moral nenhuma 2




Os senhores da pasta preta voltaram. Com sorrisos esquivos, convenientes, pendurados do canto da boca. Voltaram e vasculharam. Com os seus olhos pequeninos de agiotas. Com as suas mãos melífluas e as suas maquinetas. Viram os livros todos dos senhores do castelo. Espreitaram por baixo das mesas, dentro das gavetas, nos recantos escuros e nas arcas onde por vezes se escondem segredos da casa. Viram e rosnaram entre si. Num rumor inquietante que o castelão observava, distante, de mãos retorcidas.
Depois fizeram-lhe sinal para se aproximar. Imperativos. De dedo em riste sobre o seu nariz disseram-lhe para se sentar. E ele sentou-se. Num pequeno banco de três pés. Assim, quase acocorado, temeroso, ouviu então a reprimenda dos senhores da pasta preta. Num tom crescente de intensidade ameaçaram-no ocupar o castelo se não fizesse exactamente o que lhe haviam determinado. O castelão sentiu que já nada mandava no castelo e que só lhe restava cumprir tudo o que lhe haviam dito. Chamou então todos os seus súbditos e, engrossando a voz clamou:- Vivemos todos momentos difíceis e de todos se espera que se sacrifiquem para os ultrapassarmos. Dos que menos podem se exige que dêm tudo o que ainda têm; dos que mais podem que dêm o que não lhes fizer falta. Assim poderemos sair em breve desta situação. O povo, recalcitrante, nada reclamou porque ao lado estavam os senhores da pasta preta.
Mais tarde os senhores da pasta preta chamaram o guardião das moedas e disseram-lhe:- Tu aí , tens que te governar por tua conta. Chamaste-nos e agora tens de nos aguentar. O guardião das moedas, que temia que o castelão lhe ficasse também com as moedas, respondeu:- Pois bem, então vou ali buscar mais moedas do povo. E assim fez. Com isto os senhores da pasta preta decidiram ir-se embora. Com passos rápidos, afastaram-se do castelo dizendo:- Em breve voltaremos.

sábado, 12 de novembro de 2011

Do Ultimatum











A genialidade torrencial de Fernando Pessoa é por vezes profundamente provocatória, como demonstra o longo panfleto poético "Do Ultimatum" (Álvaro de Campos, 1917) de que transcrevo aqui um trecho sobre a sua ideia de Europa.
Faço-o como homenagem ao Poeta, que venero. Faço-o como desafio a todos nós, portugueses.













(...)A Europa tem sede de que se crie, tem fome de Futuro !
A Europa quer grandes Poetas, quer grandes Estadistas, quer grandes Generais !
Quer o Político que construa conscientemente os destinos inconscientes do seu povo !
Quer o Poeta que busque a Imortalidade ardentemente, e não se importe com a fama, que é para as actrizes e para os produtos farmacêuticos!
Quer o General que combata pelo Triunfo Construtivo, não pela vitória em que apenas se derrotam os outros!
A Europa quer muito destes Políticos, muitos destes Poetas, muitos destes Generais!
A Europa quer a Grande Ideia que esteja por dentro destes Homens Fortes — a ideia que seja o Nome da sua riqueza anónima!
A Europa quer a Inteligência Nova que seja a Forma da sua Matéria caótica!
Quer a Vontade Nova que faça um Edifício com as pedras-ao-acaso do que é hoje a Vida!
Quer a sensibilidade Nova que reúna de dentro os egoísmos dos lacaios da Hora!
A Europa quer Donos! O Mundo quer a Europa!
A Europa está farta de não existir ainda ! Está farta de ser apenas o arrabalde de si-própria ! A Era das Máquinas procura, tacteando, a vinda da Grande Humanidade!
A Europa anseia, ao menos, por Teóricos de O-que-será, por Cantores-Videntes do seu Futuro!
Dai Homeros À Era das Máquinas, ó Destinos científicos! Dai Miltons à época das Coisas Eléctricas, ó Deuses interiores à Matéria!
Dai-nos Possuidores de si-próprios, Fortes Completos, Harmónicos Subtis!
A Europa quer passar de designação geográfica a pessoa civilizada !
O que aí está a apodrecer a Vida, quando muito é estrume para o Futuro!
O que aí está não pode durar, porque não é nada!
Eu, da Raça dos Navegadores, afirmo que não pode durar!
Eu, da Raça dos Descobridores, desprezo o que seja menos que descobrir um Novo Mundo!
Quem há na Europa que ao menos suspeite de que lado fica o Novo Mundo agora a descobrir?
Quem sabe estar em um Sagres qualquer?
Eu, ao menos, sou uma grande Ânsia, do tamanho exacto do Possível!
Eu, ao menos sou da estatura da Ambição Imperfeita, mas da Ambição para Senhores, não para escravos!
Ergo-me ante, o sol que desce, e a sombra do meu Desprezo anoitece em vós!
Eu, ao menos, sou bastante para indicar o Caminho!
Vou indicar o caminho!(...)










Álvaro de Campos, 1917

sexta-feira, 11 de novembro de 2011

25 anos

CONVITE
Congresso Internacional
25 Anos na União Europeia, 25 anos de Instituto Europeu
28, 29 e 30 de Novembro de 2011 no Auditório da FDL


Demasiado entretidos com as auto-estradas que cresciam ao ritmo das transferências comunitárias, primeiro; inebriados com o dinheiro fácil e barato e com as liberdades de circulação, depois; embalados pelo discurso dos bons alunos, quase não parámos para pensar nos caminhos que trilhava a União Europeia e nós com ela.
Subitamente, todas as nuvens se abateram e, bons católicos, começámos a expiar as nossas culpas, com um comprazimento quase masoquista em apontar os nossos erros e maus comportamentos. E, também neste percurso, não parecemos parar para pensar.
Seguramente que cometemos erros mas, num momento em que se assiste a uma crise que atinge um número cada vez maior de membros da União, é preciso entender que o problema - que também é nosso - não é só nosso.
Torna-se, assim, especialmente premente a reflexão sobre onde estamos e para onde vamos.
É com o maior prazer e orgulho cívico que, em nome do Instituto Europeu e do Instituto de Direito Económico, Financeiro e Fiscal da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, convido todos os cidadãos interessados em participar na construção do seu futuro e do da Europa a participar no Congresso Internacional 25 Anos na União Europeia, 25 anos de Instituto Europeu.

Eduardo Paz Ferreira
Presidente do Instituto Direito Económico Financeiro e Fiscal
Presidente do Instituto Europeu

Entrada livre mediante inscrição prévia e sujeita à capacidade da sala

Instituto Europeu da Faculdade de Direito de LisboaAlameda da Universidade1649-014 Lisboa
Tel: (+351) 21 7933250Fax: (+351) 21 7942592E-mail: inscrições@25anosdeadesao.eu E-mail: institutoeuropeu@fd.ul.pt site: http://www.25anosdeadesao.eu/site: http://www.institutoeuropeu.eu/



Taverna argentaria





O quadro é agora muito claro, apesar da patética (convicta?) declaração europeísta de unidade do Dr. Durão Barroso. Mas obviamente a Comissão Europeia já não manda nada. E o Dr. Durão Barroso sabe muito bem disso. Desde há muito tempo.
Estamos pois manifestamente na rua.
E ainda não estamos de todo porque ainda não pagámos o que devemos.
Quando o fizermos, já chupados até aos ossos, com uma economia totalmente ressequida, uma massa de desempregados arrastando a sua penosa revolta, uma classe média destroçada, uma multidão de funcionários públicos exauridos de recursos e de pensionistas à beira da miséria, um mar de falências, um número insustentável de incumprimentos financeiros, uma banca agonizante, uma sangria inestimável de massa cinzenta – então seremos finalmente despejados do clube. Estaremos fora da taverna argentaria.
Quando então nos chutarem do eurão e andarmos a catar as résteas do eurinho, o da via reduzida, o da 2ª velocidade, o da farsa do faz- de-conta–que-somos, o do tasco mediterrânico, talvez possamos compreender como o projecto europeu foi totalmente destruído por políticos sem dimensão. Que a Europa não merecia verdadeiramente neste momento crucial.
Políticos que gerem apenas interesses de agenda, sem qualquer visão estruturante, numa espécie de santa aliança mercantilista franco-germânica que, ao revés da história política e cultural da Europa a caminho da modernidade e do progresso fazem profissão de fé de uma via que a história registará seguramente como o pesadelo do século XXI.
Eles serão responsáveis pela morte da Europa enquanto espaço social, cultural e político no qual a democracia e a liberdade, qual coruja de Atena pousada, seriam o farol no sombrio mar da tirania e da guerra.
Serão assim inexoravelmente julgados.


sábado, 5 de novembro de 2011

Inside job


http://www.youtube.com/watch?v=FzrBurlJUNk



Quando Henry Paulson deixou a Goldman Sachs, antes da falência, para tomar posse como Secretário do Tesouro do governo de G. Bush em Maio de 2006, não veio de mãos a abanar - trouxe uns largos milhões de dólares a título de compensações.
Esse foi apenas um aspecto (e ainda assim menor) da enorme crise imobiliária nos EUA que pôs em questão toda a política neoliberal cujo objectivo principal era (e é ainda) retirar do Estado a regulamentação dos movimentos financeiros a nível mundial de forma a proteger os indescritíveis lucros dos investidores que se dedicam a este tipo de especulações.
A desregulamentação precedeu e determinou esse fenómeno político-económico da globalização.
Está hoje em dia patente que a finalidade da globalização é exclusivamente a movimentação mundial do capital, de forma essa sim global, permitindo aos especuladores reinventar formas de multiplicar o seu património financeiro, sem qualquer respeito por Estados, governos ou sociedades.
Especialistas, professores e analistas de conceituadas escolas de administração e finanças dos EUA converteram-se em conselheiros governamentais com principescas remunerações e privilégios.
As políticas de cariz social são execradas como despesistas e apontadas como causa major dos deficits estatais. Em desespero de causa são apontadas soluções nas quais a prosperidade é baseada na liberalização dos negócios como promotor de emprego e de riqueza.
A soberania dos Estados é transferida para o FMI e para fundos estruturais meramente adjuvantes.
O filme Inside Job mostra à saciedade como, enquanto o contribuinte ingénuo se esgota por manter as suas responsabilidades, um bando criminoso de especuladores gananciosos e imorais refocila num mar inominável de triliões que tenta avidamente repartir. Tudo isto enquanto os responsáveis governamentais assobiam para o lado como se nada tivessem a ver com o caso.
Tudo isto enquanto muitos países tentam implementar sistemas produtivos de desenvolvimento económico afastando-se de sectores vitais de produção de riqueza como a actividade agrícola e outros. Tudo isto em nome da neo-liberalização da economia e dos movimentos indiscriminados de capitais.
Estamos assim, nós e muitos outros, debaixo do jugo do manto superior do capitalismo onde se jogam as cartadas de casino do capitalismo puro e duro, nós pessoas normais que trabalhamos para sobreviver pagando as nossas contas, os nossos impostos, satisfazendo as nossas responsabilidades, com grave prejuízo da qualidade de vida e por vezes da própria subsistência.
Somos a maioria.
Só não entendo porque é que não conseguimos fazer ouvir a nossa voz .
É tempo de o fazermos, antes que nos devorem!











segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Zona de conforto, disse ele



O emigrante não sai do seu país de livre vontade . Sai porque não encontra aí condições para se desenvolver satisfatoriamente como ser livre e senhor do seu próprio destino, ou porque não se conforma com o sistema de vida, ou porque não consegue aí realizar-se a nível profissional, ou porque é perseguido ideologicamente, ou porque não tem meios para se sustentar ou à sua família, ou ainda por uma série de razões. Não sai mesmo é de livre vontade para se passear num meio muitas vezes hostil e no qual a adaptação é quase sempre difícil e traumática.
Nos anos 60 vários factores se conjugaram para que se tivesse verificado uma vaga maciça de emigração de portugueses não só para países europeus como a França e a Alemanha ( esta numa fase imparável de reconstrução pós-guerra- não esqueçamos que estávamos apenas a escassos 15 anos do fim do grande conflito mundial), como também para a Suiça, Bélgica e ainda para os Estados Unidos, Venezuela, Brasil, África do Sul e até para Angola e Moçambique apesar da guerra colonial estar já em curso. A conjuntura económica já então desfavorável, associada a uma feroz repressão política do regime salazarista e a um nível de vida genericamente muito pobre , ou ainda a recusa de pactuar com o regime fascista vigente, foram as causas mais importantes deste êxodo, quantas vezes em condições dramáticas e degradantes para a condição humana.
Hoje, com uma taxa de desemprego seguramente acima dos 12 ou 13%, com uma estrutura empresarial altamente fragilizada, com um investimento nulo, com uma sobrecarga fiscal asfixiante, inicia-se uma emigração diferente da dos anos 60 mas não menos empobrecedora para o país. Trata-se em muitos casos de jovens qualificados, quadros, investigadores, técnicos, professores, trata-se ainda de trabalhadores que oferecem a sua força de trabalho onde lhe garantam o seu sustento e o da sua família. Trata-se em suma de portugueses que não encontram na sua terra condições de sobrevivência condigna. Como afinal os seus concidadãos dos anos 60.
Não sei se é isto que o sr. Secretário de Estado da Juventude queria dizer quando há pouco incentivava os jovens portugueses à emigração.
Nem sei afinal qual a "zona de conforto" a que se referia.
É que já estamos todos habituados ao desconforto da mudança, sr. Secretário de Estado.
Historicamente.

domingo, 30 de outubro de 2011

Fábula sem moral nenhuma




Era uma vez um reino no qual há muito o povo vivia encarcerado por ordem de um velho senhor que usava botas e vivia num palácio bafiento onde os únicos ruídos eram os dos ratos. O povo era muito infeliz e pobre . O velho senhor obrigava os seus súbditos a trabalhar para subsistir sem lhes dar quase nada em troca e mandava-lhes os filhos para uma guerra muito longe da sua terra. Muitos iam para fora para poder ganhar o sustento. Viviam no pavor de dizer qualquer coisa que não lhe agradasse porque eram logo denunciados por uns senhores esquálidos de fato preto que os colocavam numa cela só para eles e onde levavam pancada e passavam ainda mais fome. Mesmo assim alguns conseguiram juntar-se e, logo que o senhor que usava botas morreu, foram ao palácio e da janela mandaram abrir as portas das suas prisões e voltar todos aqueles que estavam na guerra distante.
Com isto o povo se achou muito diferente e começou a pensar em construir um futuro mais justo para que todos pudessem trabalhar, ler e aprender para serem finalmente felizes. Tanto mais que noutros reinos próximos o haviam já conseguido e pareciam ser todos muito felizes. Assim passaram todos a receber mais dinheiro pelo seu trabalho, a ter melhor assistência médica, a ter melhores estradas, a ter melhores casas para viver, a mandar os filhos para a universidade, a passar férias longe do reino, enfim, começaram a viver mais confiantes e a pensar que tal prosperidade nunca ia ter fim.
Entretanto os senhores que mandavam no reino também achavam que isso era bom para eles, porque assim tinham muito mais votos nas eleições e podiam viver descansados. Por outro lado os senhores que tinham guardado nos cofres dos bancos o dinheiro do povo também achavam que isso era bom para eles porque por um lado faziam grandes negócios com os senhores que mandavam no reino e por outro lado iam tirando do povo uma boa parte do que o povo recebia dos senhores que mandavam no reino.
Por outro lado ainda, para os outros reinos de fora também era bom que assim fosse, porque desta forma também emprestavam dinheiro e vendiam coisas que eles produziam a mais e que precisavam de vender.
Um dia o senhor das contas do reino foi ao cofre e achou-o quase vazio. Ficou muito alarmado e falou com os senhores dos cofres dos outros reinos à volta para saber se lhe emprestavam algum dinheiro, mas a resposta foi que também estavam com o mesmo problema e não havia dinheiro.
Então o senhor das contas do reino voltou-se para o povo e disse que já não lhe podia pagar mais, que era um problema de todos os reinos e que o povo tinha de lhe dar tudo o que tinha e ainda que os seus filhos, netos e bisnetos tinham que lhe dar tudo o que viessem a ter no futuro.
E o povo ficou muito triste. Triste e enfurecido. E disse: Nunca mais vamos acreditar nos senhores que mandam no reino. Daqui para diante vamos ser nós a mandar.
Só que esperaram em vão. E entretanto voltaram a viver como no tempo do senhor que usava botas.

sexta-feira, 28 de outubro de 2011

O quinto império







E assim, passados os quatro
Tempos do ser que sonhou,
A terra será theatro
Do dia claro, que no atro
Da erma noite começou.

Grecia, Roma, Cristandade,
Europa- os quatro se vão
Para onde vae toda edade.
Quem vem viver a verdade
Que morreu Dom Sebastião?~


Mensagem , Fernando Pessoa


vem sobre nós do tempo antigo a longa memória
o discurso do vento que o horizonte alarga e define
luz e treva no punho da manhã

a tua voz clama da bruma já não o desejado
mas o corpo abrupto
o rumor que do teu sangue flui vasto e urgente
no mar austral da viagem
a navegação do teu rosto
desde o princípio

aqui estamos pois povo infindo
na claridade do novo despertar
somos mais do que o futuro
viajamos além do nosso tempo ‘







terça-feira, 18 de outubro de 2011

O garrote

Portugal é um pais pequeno. Pequeno e pobre. Portugal é dos países da OCDE com maiores desigualdades.A despesa e a dívida pública em percentagem do PIB são actualmente insustentáveis. Os investimentos públicos têm sido em regra ruinosos – vd. o caso das PPP’s. Os acumulados de dívida das empresas públicas, dos transportes e das estradas são astronómicos. As despesas de saúde são incontroladas e crescentes. A indústria exportadora é desapoiada e manifestamente não consolidada. Há excesso de construção e houve muita especulação imobiliária com o apoio solícito dos bancos, que agora se debatem com um incumprimento gigantesco e um parque de imóveis impossível de negociar. Os níveis de produtividade são baixos. O endividamento público assustador. O externo ainda mais. Vivemos há mais de dez anos em plena crise estrutural, de apatia e de paragem económica, que começou em Guterres, continuou com Durão Barroso e Santana. Os governos de Sócrates tentaram um surto de expansão que esbarrou em inúmeras debilidades estruturais e numa oposição meramente bota-abaixista. A intervenção da troika, em desespero de causa, foi a machadada final na nossa economia . O funeral da justiça social. O fim da utopia de um Estado justo e defensor do bem-estar dos cidadãos . Talvez por culpa de uma obscura concertação político-financeira mundial, de blocos económicos pouco claros, de manobras especulativas dos mercados. Talvez por culpa de uma UE que não se assume como união política e mal se conforma a uma união económica, em sucessivas indecisões, avanços e recuos. Talvez por culpa de todos nós portugueses, que perante o mundo não assumimos a dignidade histórica que temos a obrigação de preservar. E este é o maior dos males. O garrote que nos irá estrangular.

sábado, 15 de outubro de 2011

Indignados?






Enquanto uns milhares por todo o mundo se manifestam contra um complexo sistema que afinal todos nós criámos e alimentamos , numa espiral de necessidades nunca satisfeitas, de riqueza nunca alcançada, de conluio do poder com o dinheiro, de sucessivas negações da liberdade a pretexto da construção de uma sociedade mais próspera e feliz -




morre-se por todo o mundo de fome e de sede, morre-se de doenças que são curáveis com um antibiótico, ou evitáveis com uma vacina, há crianças e adultos que trabalham forçadamente em completa escravidão, violenta-se e mata-se por um prato de comida, mutila-se e estropia-se por preconceito cultural ou lei religiosa, denega-se ou simplesmente se subverte a justiça, desvaloriza-se a vida , trucida-se e encarcera-se por diferença ideológica, ou género, ou crença,



institui-se o terror como arma, flagelo ou castigo divino, faz-se da indiferença o quotidiano, a ignorância é um mal inevitável, o conhecimento um direito das sociedades ricas, a pobreza um desagradável incómodo.




O mundo dito civilizado transformou-se numa trágica taverna argentária. A liberdade soçobra. O que está em questão é a dignidade humana . Trata-se de uma luta que não deveríamos perder.








Foto: criança africana com noma, doença frequente na África sub-saariana. Ocorre em crianças desnutridas . É mortal se não for tratada. É tratável com antibióticos e cirurgia reconstrutiva. Ironicamente o restaurante mais caro do mundo, na Dinamarca, tem o mesmo nome.












terça-feira, 11 de outubro de 2011

Retrato

Foto de Paulo Patoleia in Rostos Transmontanos












Não vejo o mundo sem os meus olhos, mesmo que tudo mude, ou até deixe de existir

porque eles são os meus olhos da eternidade












o teu rosto pertence a estes montes,
a tua voz sobe do rio e nele flui o percurso
da memória, tal o mundo, tal o discurso
que em mim te nomeia, como se fossem pontes

do passado para o meu peito, agora mais cansado,
mais lento o gesto, mais suave a mão
vem tudo de ti e eu não sabia, tudo repete o que não
pude dizer-te junto de ti , tocando-te o cabelo, sentado

vê agora comigo estes campos – a luz da alva
sobre a névoa descobre os ramos floridos
da amendoeira, é já manhã e os cheiros crescem

húmidos da terra, num antiquíssimo rumor
que só agora desvendo nos teus braços doridos
como se fossem os meus próprios braços que renascem

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

A liturgia da poesia




O Prémio Nobel da Literatura de 2011 foi atribuído a um poeta - Tomas Transtromer , nascido em Estocolmo em 1931 . Desde os 25 anos que publica poesia. Vítima de um acidente vascular cerebral há alguns anos continuou o seu labor poético até à actualidade. É considerado o mais importante poeta sueco dos tempos modernos. Publicado em mais de 30 línguas. Praticamente desconhecido em Portugal , apenas representado numa colectânea de 1981 e citado nalguns blogues de poesia que vão por aí sondando o outro mundo . O que não admira. A poesia em Portugal é ostensivamente ignorada. As editoras aqui apenas crismam os génios preconcebidos. Ou pré-concebidos, enfim como quiserem. Temos as editoras que merecemos e as escolhas que não merecemos. Pequeninas, grotescas e ridiculamente preconceituosas. Como os bolinhos da tia, que ninguém come mas todos elogiam.

A Academia redimiu-se, depois de algumas escolhas menos boas. A Poesia verdadeira - essa visão premonitória, essa descoberta do apenas imaginável que está para além do real, essa libertação suprema do quotidiano, essa verdade sempre renovada, esse incêndio das palavras que torna a condição humana o único bem em que nos podemos encontrar como seres solidários, essa visão intangível de um mundo mais próximo - essa Poesia está hoje em festa.

Com essa festa me congratulo e me associo com todo o meu profundo entusiasmo.

Amanhã as editoras deste pobre país vão descobrir que a Poesia afinal existe.

quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Dignidade




Ela estava ali sentada à minha frente, as mãos de dedos finos e pálidos sobre o regaço, os olhos sem brilho. Fez-se um silêncio. Dois ou três longos minutos de interrogações. De súbito o meu olhar cruzou-se com o dela. Entendi-lhe a força da sua enorme fragilidade. Do seu pequeno corpo decrépito, minado pela doença terminal. Da solidão perante a doença inexorável. Do nada físico exposto ali, pungente, como se fosse a última das dádivas. Ao lado a empregada do lar de idosos em que vivia folheava um dossier de capa verde com meia dúzia de folhas. Notas clínicas sumárias. Monólogos de vazio quotidiano. Tudo se resumia àquele círculo da nossa presença. Que os seus olhos tornavam do tamanho do universo.
Fora, no pequeno televisor da sala de espera da consulta, passavam notícias da bolsa no noticiário das 13.

terça-feira, 27 de setembro de 2011

canto do amanhecer

Ao Carlos Paredes




neste país que arrefece nos silêncios
das lutas mortas
naus submersas de viagens sem regresso
maio esquecido
nas searas de trigo imaginado
no teu peito inquieto eu procuro o teu rosto
ó voz antiga
ó rio infindável
da liberdade
já não te ouço
já não te espero no alvor da manhã
como dantes
onde o meu sangue te nomeava
os meus olhos já não te podem ver
como dantes
e o meu corpo vagueia
neste canto do amanhecer
sem alegria
sem nada

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

os olhos vazios dos deuses



Os homens da Europa, abandonados às sombras, desviaram-se do ponto fixo e reluzente. Trocaram o presente pelo futuro, a humanidade pela ilusão do poder, a miséria dos subúrbios por uma cidade fulgurante, a justiça quotidiana por uma verdadeira terra prometida. Perderam a esperança na liberdade das pessoas e sonham com uma estranha liberdade da espécie; recusam a morte solitária e chamam imortalidade a uma prodigiosa agonia colectiva. Já não acreditam naquilo que existe, no mundo e no homem vivo; o mistério da Europa é que ela já não ama a vida. Os seus cegos acreditaram de modo pueril que amar um único dia da vida equivalia a justificar séculos inteiros de opressão. Por isso, quiseram apagar a alegria do quadro do mundo adiando-a para mais tarde.
A impaciência dos limites, a recusa da vida na duplicidade, o desespero de ser homem, levaram-nos, finalmente, a uma desmedida desumanidade. Ao negarem a justa grandeza da vida, precisaram apostar na sua própria excelência. Na falta de coisa melhor, eles divinizaram-se e a sua desgraça começou: estes deuses têm os olhos vazios.

Albert Camus, O Homem Revoltado , 1951





Não queremos os deuses

da misericórdia

não tememos a dor

não tememos o medo

não queremos voltar a ser a imagem da inquietação.

Invocamos-te, divindade, para te dizer: não te queremos.


Já não somos escravos, libertámos a vontade

defrontámos o teu rosto para te mostrar os nossos olhos

a nossa boca que proclama liberdade

os nossos braços que derrubaram as grades

das tuas prisões.


Pode a tua voz rugir sobre nós, lançar o medo, o opaco

manto da negação


mas nada nos deterá.

sexta-feira, 16 de setembro de 2011

sôbolos rios que vão

ao rio Sabor, berço da minha memória

e a Camões, tão perto de nós


sôbolos rios que vão
na minha terra, crescem
as penas que em mim nascem
das memórias que ali estão
e por eles permanecem

como o verde curso agreste
levo a mágoa que se tem
por tudo o resto que vem
no tempo que a mim reste
do tempo que a vida tem

entre o meu corpo e os medos
contam-me sonhos do mar
belas coisas de encantar
desvendam-me os seus segredos
que o sonho não vai guardar

dos meus rios desta vida
não me digam donde vão
porque se alonga a partida
sôbolos rios que vão
em todos há despedida



Pedro Saborino

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

não quero ser uma paramécia



a paramécia é um ser unicelular não pensa não tem cérebro é um ser unicelular pois claro a minhoca tem 300 neurónios a mosca aí uns 60 000 mas sabem a paramécia reage foge esquiva-se e vive tem vida própria e a minhoca quando lhe falta a comida junta-se as outras minhocas a mosca descobre os aromas e até dizem que se embebeda mas não é só outros seres como os macacos os lobos os golfinhos reagem ao ambiente de forma inata pré-determinada imanente nem eles próprios sabem porque o fazem mas fazem e fazem-no para se defenderem ou para se alimentarem ou para se reproduzirem de acordo com o ambiente ou as suas necessidades só isso –
mas eu tu nós todos modulamos as nossas emoções escolhemos agimos construímos decidimos muito para além das emoções da tristeza da raiva do pânico do desejo sorrimos e rimos e choramos percebemos o nosso corpo para além dele próprio para além de mijar de fazer sexo temos a ideia de nós mesmos como seres absolutamente imperfeitos e vulneráveis compassivos e despóticos apaixonados e indiferentes corajosos e cobardes indecisos e determinados submissos e inconformados temos memória procuramos a justiça e o bem e a solidariedade e a verdade nos vales profundos do pensamento nesse limbo que separa a biologia da paramécia da natureza humana -
não sejamos paramécias não deixemos que façam de nós paramécias a nossa mente é a substância do nosso corpo

terça-feira, 6 de setembro de 2011

cosa mentale







cosa mentale


(…) ninguém sabe como e por que meios a mente move o corpo.
Espinosa, Ética

No início tinha apenas umas fulgurações, algo que não o incomodava muito. Como que uma pressão por detrás da órbita direita. Nada que o impedisse de escrever. Muito menos de pensar. As suas rotinas diárias fluíam invariáveis, as aulas, o novo romance que começara a rever, a crónica semanal que tinha de enviar para a redacção até quarta feira, a visita diária ao café, os seus papéis em que anotava ideias e comentários de leituras, por vezes fazia desenhos. Desde que se separara tinha mais tempo para tudo isso. O Brisk, o velho boxer, tinha morrido meses atrás. A casa tinha agora uma penumbra de fumo de cachimbo e fina poeira suspensa que os escassos raios de luz revelavam. Retirara todas as fotografias dos caixilhos que agora se dispersavam vazios pela casa como olhos cegos. Ficava por vezes, sentado na beira da secretária, a olhar esses caixilhos como se fossem quadros de memória silenciosa. Tinha um passado, claro, para lá dessa fronteira invisível. Toda a gente tem um passado. O corpo tem um passado físico inexorável. Mas olhar o tempo era diferente. Não porque as coisas tivessem mudado, mas porque se sentia diferente.
Começara entretanto com dores mais fortes. O olho direito começara a ficar mais saliente e a visão complicou-se. Agora via duas imagens.
Tudo se precipitou a partir daí. Os exames médicos mostraram um tumor dentro da órbita. No dia em que lhe deram a notícia foi para casa e sentou-se junto da janela da sala até anoitecer, com as mãos cruzadas sob o queixo, estático. Pela primeira vez pensou que podia morrer.
Morrer sozinho. Para si e dentro de si. Entre os livros e papéis espalhados. Como a chuva que caía lá fora era algo que podia apenas explicar, mas que não podia impedir. Tal como a divindade universal.
Podia então morrer indefinidamente e continuar . Porque morrer não era um bem, nem um mal. Apenas uma transição.

quinta-feira, 11 de agosto de 2011

O saque


o saque

podemos dizer dos muros que foram derrubados
só porque não os vemos?
ou porque tu e eu os ignoramos ?
ou porque simplesmente já não existem?
ou porque já não os desejamos
no silêncio das nossas omissões e cobardias?
a nossa força não provém da opressão
mas da liberdade
as verdades mudam com as fomes
ou as pragas
ou as mentiras
ou as feridas
ou as violações
(as próprias guerras nada mudam para além das mentiras)
vivemos rodeados de quotidianas verdades
mas a verdade
a derradeira verdade
é a que te liberta
e que te consome
totalmente

terça-feira, 9 de agosto de 2011

tempos











muitas coisas se passaram dentro dos meus versos
alongou-se, talvez demais, o espaço entre as sílabas
que prenunciavam a mudança
e eu estava ali num silêncio compacto e vicioso
que a espera tornava difícil
nada definitivamente nada fluía desse recanto
digamos desse indefinido pedaço de memória
como se fosse uma mera imagem das minhas inquietações
aí então, como uma faca no vazio, se revelaram os diversos tempos
o tempo inicial e informe do princípio
milhões sobre milhões de anos, pó sideral disperso
até ao tempo do meu passo sobre este chão concreto
ou o meu tempo interior sem tempo que apenas e exclusivamente construo
do tempo cronometrado do meu gesto
ao tempo sem tempo nenhum da minha ideia de tempo
do universo que flui dentro de mim e apenas apercebo
passado, presente e futuro são agora construções, como a praça vazia da minha vila se refaz no fontanário que eu vejo ali em baixo
mas podia nem sequer ver
podia apenas imaginar
como as pedras sobrepostas de uma escada
ou o amanhecer por detrás da janela envidraçada


aí então podia descortinar o tempo definitivo
o tempo real da realidade

o tempo total

Pedro Saborino






sábado, 6 de agosto de 2011

Hiroshima, 8 e 15



Hiroshima, 8 e 15


leite negro da aurora bebemos-te à tarde
bebemos-te cedo e no dia bebemos-te à noite
e bebemos bebemos
Paul Celan – Fuga da morte



temos todos as mãos sujas
a cinza escorre-nos entre os dedos
e as feridas ainda ardem na memória
dos cativeiros
das valas abertas, dos fornos fumegantes

morre-se aí
a mesma morte de todas as guerras

nós queremos apenas abrir os olhos sobre o vale funesto
e ver por fim a força das palavras
definitivas
o leite e o mel
no regaço da mãe
a giesta
o rio fluente
o canto

terça-feira, 2 de agosto de 2011

O banqueiro neo-anarquista, Espinosa e a liberdade








O banqueiro neo-anarquista , Espinosa e a liberdade


certamente, neste ou noutro dia qualquer, você compreenderá que o jugo tirânico do dinheiro se insinua por si próprio, se enrola sobre si mesmo como uma hélice de que não se conhece nem o fim nem o princípio, a desigualdade é um fatalismo, a liberdade um poder igualmente desigual que você pode ter ou não ter conforme o dinheiro seja poderoso ou subjugador, a minha liberdade não é o poder do dinheiro é saber que o seu trabalho não é mera ficção mas o meu lucro, mas já estou muito longe, meu caro amigo, da acção directa, o anarquismo é um mero disfarce a persona cinzenta talvez um pouco cínica em que me escondo, na verdade eu acredito que os marxismos estão todos mortos e que não somos definitivamente todos iguais, a revolução acabou , o meu próprio dinheiro não me mede a riqueza. afinal o que é ser rico? uma metáfora , ser rico não me torna livre mas você, que não é rico, não é igualmente livre, repito - a liberdade não existe por si é um poder discriminatório, a sociedade é um poder regulador, a burguesia uma miragem, você leu Gramsci? não acredito em intelectuais, não há cultura de massas, o dinheiro dimana para a cultura porque a precede, sem ele a cultura é uma falácia




- a liberdade é uma construção interior ( respondeu-lhe pausadamente o interlocutor), Espinosa situava a liberdade numa necessidade livre . o poder não é verdadeiramente livre porque não é exercido de dentro para fora e por isso considera toda a liberdade perigosa. mas a minha essência é ser livre e não temo o poder, nem o do dinheiro.essa é a minha liberdade

sexta-feira, 29 de julho de 2011

Sophia revisitada em Cacela

para Ibn Darraj al-Qastalli, poeta do al Andaluz





para Cacela Velha





e para Sophia de Mello Breyner








Poema azul


do mar azul dizia
e subitamente sobre o manto
da manhã mais não via do que o sereno azul
da flor e dos teus olhos
amada e flor azul como tu eras

do mar ainda a luz da madrugada
o gosto salgado e o profundo olhar
mais não sabia que muitos mares azuis
e azuis campos de flores
eram como do teu rosto a flor

e flor diria o teu corpo
tudo enfim te tocaria









Pedro Saborino


(Foto, aliás belíssima , de Elsa Estrela)

Revelação

Foto de Carlos Muralhas



Revelação


os objectos declinam a luz
em iluminuras suspensas ao final do dia
quando a cidade se adensa por entre códices e rumores
fervilham sons nos recantos
e aves cruzam o espaço dos jardins agora prisioneiros das estátuas
há gente apressada pelas ruas
olhares, silêncios, palavras gretadas, gestos esquivos nos autocarros suburbanos
que fedem um suor magoado, espesso

o rio é agora só uma esquina
um passo
um eco que a noite inventa em naves ocultas
do passado
nas vielas onde ascendem cheiros do perdido império
jasmim, incenso, canela


por fim tudo ali se mostra
aos olhos cegos
numa beleza táctil que nem a morte sujeita, grandiosamente
à destruição do corpo e à temível presença dos anjos
incompletos


Pedro Saborino

domingo, 24 de julho de 2011

obituário

para Maria Lucia Lepecki


obituário


agora já não descrevemos em conjunto a migração das aves
tocamos apenas um corpo gélido
que flutua sobre a linha
das interrogações
o rosto emerge concrescente e, como um ocaso, divagamos em socalcos
de memórias
numa penumbra inquieta
como se tudo fosse tão só o cenário
das coisas reais

destas já não negamos o interior
apenas lhes interrogamos os recantos
que a luz não define
e onde os espaços do silêncio são maiores

por vezes tão vastos que
se iniciam no seu fim



Pedro Saborino

quarta-feira, 20 de julho de 2011

Esteiros









Esteiros


do esquivo vento outonal
te passará depois o inverno e daí arrancarás as flores
que a terra húmida e premente
te abrirá nas mãos
gretadas de unhas negras e inquieta revolta
virá o sol mais tarde pela manhã
talvez pela tarde quando os teus pés se perderem em ruas de cinza
e uma luz coada breve te afagar a cara
naquele recanto onde costumas estar sempre
a olhar o rio





Pedro Saborino

Ay Carmela

Homenagem a Mainstreet



Ay Carmela



não passarão sobre o teu corpo
não desenharão o rio do silêncio sobre ti
o tempo não ocultará o teu rosto
ou as tuas mãos
ou o teu sangue
ou o teu filho
ou a tua morte

não será medo ou fome ou dor o teu grito
mas o vento que dissipa a névoa

o mar que invade o sonho


estaremos aí
nesse chão