quarta-feira, 30 de setembro de 2009

segunda-feira, 28 de setembro de 2009

Não me desiluda





Na verdade, que estranhas são as vielas da cidade da dor,
onde, no silêncio falso, feito de tumulto,
com violência e bravata, o vazadouro sai do molde do vazio:
o ruído dourado, o monumento que explode.


X Elegia de Duíno , R.M. Rilke



Não me desiluda dr. , dizia, as mãos contorcidas, o olhar anguloso.
Conheci aquele olhar mil vezes , reconhecê-lo-ia ainda entre mil outros, a pergunta que fica
suspensa sem resposta, parada entre o tudo e o nada.
Não me desiluda – eu sei que me pode curar. Na face, a chaga do tumor patente como uma
abominação. Várias cirurgias, radioterapia, esperanças, depois o nada. Veio procurar-me na
esperança de uma cirurgia salvadora. Sr. F. eu não posso curá-lo. Vou tentar reduzir o tumor,
vou fazer o que for possível, mas não posso curá-lo. Dr. eu sei que pode. Não me desiluda.
E segurava-me no braço enquanto, de lado, a filha dizia que sim com movimentos da cabeça.
Sr. F. a última TAC não é nada animadora. Há vários focos de tumor. Dr. o senhor vai conseguir,
eu sei que vai conseguir.
Mas eu sabia que não ia conseguir.

quinta-feira, 24 de setembro de 2009

Poema de amor



deixa-me pensar como eras antes
as minhas palavras secam-se antes de te descrever
não sei mesmo como te diria
se pudesse por fim ver o teu rosto
entre milhares de poemas verdadeiros
onde te nomeio, como uma invocação ou como uma infinidade

deixa-me revelar-te a curva dos dedos
o olhar talvez inquieto , os silêncios, a respiração
sobre os lábios como o meu corpo agora dormente

vou para além, até onde o poema me leva
o sussurro das árvores junto ao mar diz-me que já é dia
e em breve tudo se revelará
as vozes levantar-se-ão do seu torpor

deixa-me sentir –te neste momento breve
do fim da noite em que tudo se suspende

Setembro de 2009

sábado, 12 de setembro de 2009

Nostos


Voltou Jorge de Sena à terra donde partira um dia, ressentido, amargurado, descrente, inquieto. Inquietude que, no exílio lhe agigantou a obra.
Mas terá valido a pena? A terra continua mesquinha e vil, sombria, incerta. Eternamente adiada.

Ode para o Futuro

Falareis de nós como de um sonho.
Crepúsculo dourado. Frases calmas.
Gestos vagarosos. Música suave.
Pensamento arguto. Subtis sorrisos.
Paisagens deslizando na distância.
Éramos livres. Falávamos, sabíamos, e amávamos serena e docemente.
Uma angústia delida, melancólica,
sobre ela sonhareis.
E as tempestades, as desordens, gritos,
violência, escárnio, confusão odienta,
primaveras morrendo ignoradas
nas encostas vizinhas, as prisões,
as mortes, o amor vendido,
as lágrimas e as lutas, o desespero da vida que nos roubam
- apenas uma angústia melancólica,
sobre a qual sonhareis a idade de oiro.

E, em segredo, saudosos, enlevados,
falareis de nós - de nós! - como de um sonho.


Jorge de Sena, in 'Pedra Filosofal'

quarta-feira, 2 de setembro de 2009

A peste




Mas a religião do tempo da peste não podia ser a religião de todos os dias e se Deus podia admitir, e mesmo desejar, que a alma repouse e se rejubile nos tempos de felicidade, desejava--a excessiva nos excessos da desgraça. Deus concedia hoje às suas criaturas a graça de colocá-las numa desgraça tal que lhes era necessário reencontrar e assumir a maior virtude, que é a do Tudo ou Nada.
Paneloux afirmou ao seu auditório que o que iria dizer não era coisa fácil – que era preciso querê-la, porque Deus a queria. Os tumores que se formavam eram o caminho natural por onde o corpo rejeitava a infecção......e diziam “Meu Deus, dai-nos tumores”, o cristão saberia abandonar-se à vontade divina ainda que incompreensível. O mal era enviado por Deus.
”Meus irmãos”, disse por fim Paneloux, anunciando que ia terminar, “ o amor de Deus é um amor difícil. Ele pressupõe o abandono total de si mesmo e o menosprezo da pessoa. Mas só ele pode apagar o sofrimento e a morte das crianças, só ele, em todo o caso pode torná-la necessária, pois é impossível compreendê-la e não podemos senão desejá-la. Eis a difícil lição que desejava compartilhar convosco. Eis a fé, cruel aos olhos dos homens, decisiva aos olhos de Deus de quem é preciso que nos aproximemos. Diante desta imagem terrível, é preciso que nos igualemos.

Albert Camus, A Peste 1947


Nesta dança da morte não queremos o deus

da misericórdia não queremos voltar ao irremediável

porque não tememos a dor nem o desconhecido

não queremos voltar a ser a imagem da inquietação

Invocamos-te, divindade, para te dizer : não te queremos

há muito que não somos escravos, que libertámos a vontade

que defrontámos o teu rosto para te mostrar os nossos olhos

desafiadores, a nossa boca que proclama a liberdade

os nossos braços que derrubaram as grades

das tuas prisões milenares

Pode a tua voz rugir sobre nós, desferir o raio, lançar o medo, o opressivo manto da guerra

que nada nos fará calar

Nesta dança da morte que há muito deixámos de temer


2 de Setembro de 2009