sábado, 28 de fevereiro de 2009

Retrato a sépia


Todas as minhas memórias de infância começam em Moncorvo.
Há uma ligação irreprimível com a serra do Roboredo , que eu via das janelas de minha casa e povoava de fantásticas aventuras , no meio dos seus caminhos pedregosos e do arvoredo de cheiro penetrante. Dela eu conseguia olhar a vila como um casario distante à volta da igreja e esse efeito era como que um horizonte de liberdade. Contavam-me histórias do meu avô Adelino a atravessar a serra muitas vezes de noite para ir de Urros a Moncorvo, a cavalo, desafiando lobos e outros perigos. Histórias também da riqueza imensa que a serra guardava , com o seu ventre cheio de minério de ferro.
Da vila para a serra eu passava pela estação de caminho de ferro, com o seu depósito de água e a linha férrea cintilante ao sol, deitada sobre as travessas de madeira, com um cheiro de alcatrão que nunca esqueci. A estação e perto dela a fonte de Sto. António , com o tanque de água fresquíssima mesmo no Verão e o musgo das paredes, eram a fronteira entre o meu mundo conhecido e a aventura .
Na vila , a igreja dominava a paisagem. O adro e, dentro dela, a majestática nave , com uma luz coada e os seus recônditos onde as vozes se perdiam em ecos abafados . Igreja de dominante presença, com o granito acastanhado das suas paredes , os seus sinos que marcavam o tempo da terra , um tempo que no Verão abrasador se alongava pelas ruas e no Inverno se acolhia nas lareiras .
Pelas festas a igreja recebia o pregador , de voz troante e que vinha de fora para falar aos fiéis. A sua voz reberverava nas arcadas ogivais como a de um bíblico mensageiro .
E a praça - a praça ,defronte ao castelo, era uma imensa sala de visitas, com coreto e bancos em torno. Mas dela eu fugia para outras aventuras, na Corredoura e no campo da bola , que eram o meu poiso de eleição.
Festas, feiras, foguetório, bandas de música, procissões, tudo passava ali pela praça, debaixo dos meus olhos maravilhados.
Depois havia ainda o cine-teatro as Aveleiras, a rua do Cabo, a casa da guarda, as quintas . E a casa dos meus Pais - o trabalho da oficina de alfaiataria, o sobe e desce da minha Mãe, a minha Avó Amélia , o escano do quintal onde nas noites de Verão se podia dormir, o fumeiro, os cântaros de água fresca.
E as pessoas e casas da vila, o sóto, o café do Sr. Basílio , a farmácia da D. Carmen.
Imagens que no passado reencontro quando preciso de me reencontrar no presente.

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

A "caixa negra" da cirurgia




O acto cirúrgico envolve em regra três fases : a fase pré -operatória na qual é identificado, definido e esclarecido o problema cirúrgico do doente, que então deverá ficar ciente da extensão e possíveis complicações da cirurgia; a fase pós-operatória, verdadeiramente pública, em que são patentes os resultados imediatos e muitas das principais sequelas.

Entre estas duas fases ( e correspondendo ao acto cirúrgico em si ) encontra-se um espaço que o cirurgião reserva como de absoluta intimidade com o seu doente e que constitui o que se pode chamar de verdadeira black box , reduto do artífice, do cientista, do mago, porventura do inovador. Nele fluem momentos de diversos níveis de contenção, alguns terrívelmente críticos por estar em questão a vida ou a morte. Momentos que requerem por vezes uma decisão, sempre solitária, um gesto de corajoso avanço, mas também por vezes de angustiante abandono.

Há certamente um treino que permite dosear as emoções, decidir com base na prudência e no princípio da menor lesão, mas essa decisão será sempre individual e nunca partilhada, nem com a equipa que nesses momentos se reserva à orientação do chefe.

Daí o principio da autoridade do cirurgião, que nunca é questionada porque em última análise é ele que assume o gesto e a consequência.

Pode ( e deve) reportar, relatar a cirurgia, mas é com ele que o doente e a família dialoga, é a ele que avaliam, é a ele que citam no bom e no mau momento.

É pois esta caixa negra que guarda o segredo da fronteira entre o banal e o transcendente, o humano e o sagrado .



segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

Coragem e outras ideias


Perguntam-me às vezes que qualidades deve ter um cirurgião.
Questão difícil.
Primeiro porque um cirurgião intervém de forma invasiva num corpo alheio, ressecando, eliminando, modificando, mutilando, enfim alterando a situação anatómica, se assim quisermos designar um estado que , por se considerar patológico , deva ser alterado.
Esta intrusão é, em rigor, violar um espaço físico no sentido imediato do termo. E o corpo é do ponto de vista ético , inviolável, quer esteja vivo ou morto. A sociedade e por ela a justiça regulam de forma muito estreita a qualidade e o alcance dessas intervenções.
A lesão infligida é legitimada pela necessidade de tratar um mal , ou repor a normalidade numa anomalia , ou minorar um mal maior, ou simplesmente salvar o todo que designamos por vida.
De modo que toda a formação de um cirurgião é baseada na necessidade de intervir, no modo como intervir, nas consequências dessa intervenção e, sobretudo na consideração do todo que é o doente.
Do todo físico, social, familiar e moral.
Daí que o cirurgião tenha ( ou deva ter) uma responsabilidade social acrescida e um padrão de comportamento inquestionável.
Mas e para além disso julgo que há outros requisitos necessários .
Uma vez respondi a uma doente minha que um cirurgião precisa de ser corajoso.
Corajoso físicamente e psicologicamente . Há situações intraoperatórias de grande stress que exigem controlo absoluto de emoções e muitas vezes decisões drásticas com implicação directa na vida ou na qualidade de vida do doente - e essas têm de ser tomadas naquele segundo, não amanhã ou depois.
Coragem, determinação, autocontrolo, decisão, perícia e respeito, empatia e solidariedade pelo ser humano que está nas suas mãos. Sem descriminação de nenhuma espécie.

domingo, 1 de fevereiro de 2009

Quanto vale uma vida?






Quanto vale uma vida de alguém que rasteja aos teus pés implorando comida, no auge da miséria e da desumanização ?


Quanto vale uma vida ceifada por uma bala, ou uma bomba ou uma mina ?


Quanto vale uma vida que a discriminação e a intolerância decidiram eliminar?


Quanto vale uma vida que a tortura reduziu à ignomínia do objecto desprezível?


Quanto vale uma vida à qual se impediu o acesso à instrução?


Quanto vale uma vida que a sociedade afastou por deformidade, incapacidade ou por doença?


Quanto vale uma vida dizimada pela cobiça, pela ambição, pela inveja ?


Em nome de quem, de quê, de que obscuros princípios, se mutila, se viola, se prostitui?