quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

Final

Tudo é efémero.
Tudo tem um ponto final.
Ou talvez apenas uma vírgula, num imenso contínuo.
Esta minha passagem pela blogosfera foi uma experiência gratificante. Mais uma. Chegou o momento de lhe pôr fim.
Em nome de outros projectos.
Por vezes há que refazer a intimidade das palavras para criar algo de novo. É o caso.
Ou, para citar a Fiama Hasse Pais Brandão nesse belíssimo poema "Do Outono", poderia dizer:

Sem vento a minha voz secou
aqui, neste parque de cedros quietos.

Tudo é como ontem era, mas a minha
voz,na minha face, calou-se,
porque só o vento me trazia a fala,
vinda de algures, com notícias de alguém,
indo para além, para outros ouvidos, num
país.

Até sempre.

terça-feira, 24 de novembro de 2009

a poesia não tem de ser




a poesia não tem de ser bela
há apenas aves apodrecidas
no bordo do caminho
os deuses há muito deixaram os rios onde agora flutuam detritos
e escuros limos
a poesia não tem de desvendar ou interrogar ou interpelar
há por vezes demasiadas palavras na poesia
e o tempo urge
a poesia não tem de ser ilegível
ou hermética
deve ser directa e brutal como uma puta
despir-se
vomitar trucidar violentar
a poesia não tem de mudar nada
no todo imutável
tem sim de libertar
tem sim de recusar

não há poesia nenhuma numa criança morta

Novembro de 2009

domingo, 22 de novembro de 2009

Do real



Do real

(…) Aprendi que o real é um nó que se desata no ponto rigoroso em que uma cena fulgor se enrola e se levanta.
Maria Gabriela Llansol, Lisboaleipzig , 1994)

sempre ali estiveram, na dobra dos dias
mas apenas as revelámos nas palavras
por vezes de forma mortal decidindo a imagem
ou o sentido da imagem no seu interior
sem que ela se revelasse por si mesma ao nosso olhar

de modo que a geração das palavras
com que as nomeávamos, ou lhes definíamos a curva,
continuamente se insinuava entre nós
e o tempo
num devir absoluto

Novembro de 2009

quarta-feira, 18 de novembro de 2009

marginalia



cinquenta e poucos anos, no alto do rosto magro e anguloso, agarotado, as sobrancelhas espessas, perguntava-me então como é que vai ser a minha vida? eu trabalho estou na hotelaria trabalho num restaurante como é que vai ser a minha vida? fez-se um espaço ali um espaço interrogativo silêncio a mulher ao lado de lábios entreabertos dentes tortos pois como é que vai ser a vida dele ? temos dois filhos tenho de lhes dizer então que idade têm os seus filhos? seis e doze ah seis e doze mas o problema importante agora é tratar de si já lhe expliquei o que lhe vamos fazer este osso aqui tem de sair e a língua compreende a língua está toda invadida não há forma de tirar o tumor sem tirar tudo isto aqui e o dedo indicador direito percorria o queixo de um lado ao outro vamos ter de lhe fazer aqui uma traqueotomia pode ser apenas temporária depois decidimos e a alimentação? ah a alimentação primeiro através de uma sonda e por quanto tempo dr.? isso depende há doentes que recuperam mais rapidamente isso depende isso depende a mulher de lado o olhar fixado em mim , mas depois posso trabalhar? o que é que eu vou dizer ao meu patrão? quanto tempo? cinco meses? sim talvez cinco meses com a cirurgia e a radioterapia aí uns cinco meses , voltou-se ligeiramente na cadeira, as sobrancelhas elevadas pois cinco meses, mas depois não posso voltar a servir à mesa no restaurante que trabalho é que vou arranjar? de novo um silêncio
uma pequena nota à margem do texto principal
fora o jardim com um lago e alguns pássaros. chovia.

sábado, 14 de novembro de 2009

Elegância, eficácia e cortes de açougueiro


Em miúdo ia muitas vezes com a empregada da casa à praça, o mercado 31 de Janeiro, ali para os lados do Saldanha. Dessas incursões guardo na memória, como uma experiência quase iniciática, a visita ao talho. O magarefe empunhava o facalhão, previamente afiado num cerimonial que ele próprio desfrutava pelo canto do olho zanaga, pegava no naco de lombo ou no costado do porco e com uma suavidade calculada separava bifes e costeletas, que ia juntando ao lado com delicadeza .
Nada daquilo me parecia cruel ou grosseiro. Muito pelo contrário, eu via nesses gestos delicados, naquelas mãos sapudas, um requinte de perícia que eu admirava de olhos arregalados.
Mais tarde, já durante a minha formação hospitalar como cirurgião, recordei muitas vezes esses mesmos gestos. Vi e trabalhei com muitos cirurgiões. Alguns limpavam as mãos à bata, como se estivessem em campanha. Outros hesitavam na abordagem das estruturas, sem convicção. Outros ainda tremulavam perante qualquer emergência como principiantes. Outros ainda tratavam os órgãos com displicência ou com agressividade.
Mas também vi alguns, muito mais raros, que repetiam a suavidade do gesto do açougueiro. Que acariciavam os tecidos como panos de seda . Que dissecavam a canivete . Que moviam os dedos entre as pinças e compressas como uma dança magistral.
Estes ensinaram-me a paixão da cirurgia. O desafio da vida e a intimidade da arte.

sábado, 7 de novembro de 2009

Não


Estava sentado à minha frente, as pernas cruzadas, a direita sobre a esquerda balanceando. Magro, de olhos muito azuis, um azul brilhante e prescrutador. As mãos estendidas, dedos longos, unhas compridas e amareladas do tabaco.
A mulher, ao lado, fazia-me uns sinais de alguém que bebe, acompanhando-os de um olhar oblíquo na minha direcção. Mas afinal o tratamento é para ficar curado? Isso não posso garantir-lhe. Não, não quero. Sabe, sr. dr. ele foi militar. É muito teimoso. Não. Eu não vou fazer tratamento nenhum. Fico assim. O sr. compreende que, se não se tratar, o tumor vai crescer inevitavelmente. Pois. Eu sei. Os olhos ficaram-lhe subitamente mais baços. Já ali não estava. As pernas pararam de balancear. O olhar fixou-se num ponto alto da parede branca atrás de mim. Tudo parou. Sabe, agora já não me apetece fazer a barba . Só a faço de vez em quando. Dantes era todos os dias. Não podia deixar de ser. E tinha gosto nisso, logo de manhã. Agora é a custo. E aborrece-me. Fitou-me nos olhos. Percebi que já tinha desistido. Que queria morrer. Sozinho.

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

Tristes trópicos

Com a cena nacional transformada numa miserável taverna argentaria, há acontecimentos que passam quase despercebidos, sinal da nossa periferia e quase inexistência cultural.
Assim não admira que tenha sido ignorada a morte de Claude Lévi-Strauss, figura ímpar da cultura da segunda metade do século XX. O autor de Tristes Trópicos ( relato admirável da sua vivência de contacto com os Ameríndios) e de Estruturas Elementares do Parentesco é na realidade o fundador da Antropologia Cultural moderna . A sua visão universalista e globalizante do comportamento social e cultural que construiu numa perspectiva estruturalista as bases antropológicas da sociedade, constitui uma visão ímpar do mundo e do respeito pelo homem na sua dignidade e diversidade.
As leituras que fiz das sua obra na minha juventude , em particular os Triste Trópicos ( que foi por muito tempo para mim um autêntico roteiro de aventura e de descoberta), deixaram marcas profundas na minha formação e na forma de entender o mundo. Infelizmente compartilho com ele o pessimismo quanto ao futuro e subscrevo as suas palavras de que "este não é o mundo que eu amo".

quinta-feira, 29 de outubro de 2009

Ariel

Sylvia Plath (1932-1963)

Leoa do Senhor como nos unimos
Num eixo de calcanhares e joelhos!... O sulco
Afunda e passa, irmão
Do arco tenso
Do pescoço que não consigo dobrar.
Sementes
De olhos negros lançam escuros
Anzóis...
Negro, doce sangue na boca,
Sombra,
Um outro voo
Arrasta-me pelo ar...
Coxas, cabelos,
Escamas dos meus calcanhares.
Branca
Godiva, descasco
Mãos mortas, asperezas mortas(...)


Ariel

desta cidade viverá o teu nome, renascerá o teu rosto
oh deus da justiça, mais do que os anjos que velam o invisível
sobre nós baixarás a tua mão
brotará o sangue sobre a nossa fronte
como a bênção da morte redentora
falarás depois do esquecimento e
tudo se fechará num silêncio absoluto
como a luz que provém da escuridão
num rio que vem do fundo do tempo
remoto tal a origem do corpo


o universo tremerá , o negro espaço da força incógnita
definirá as tuas palavras e então
oh deus da justiça, desvendarás o significado da sabedoria do anjo
e das formas
mostrarás o teu poder
sobre a quietude, o vazio, desvendarás a dor
que nos prende
e nos mantém escravos


desta cidade te escutaremos a voz , te tocaremos a ponta dos dedos
oh deus da justiça
como o cântico da libertação

Pedro Saborino

29 de Setembro de 2009






domingo, 25 de outubro de 2009

Um corpo na duna


Foi encontrado de borco sobre a areia, de camisa aberta no peito, os dedos enclavinhados numa arma.
Na estrada , em cima, o carro tinha a porta do condutor aberta. Sobre o banco da frente o casaco, várias chaves espalhadas, um papel escrito com três ou quatro linhas. Escorria-lhe da cabeça um fio grosso de sangue. Ao lado alguns cigarros meio fumados. Caía uma chuva fina, insistente. O mar ressoava ao longe por sobre os pios das gaivotas.
Ali estava, como um tronco caído, sem raízes.
Um estilhaço.
Um barco naufragado.
Podia quase ouvir-se ainda o estampido ecoando na praia.

terça-feira, 20 de outubro de 2009

A tragédia da senectude


Nunca saí a correr de casa para comprar um livro de Saramago. A minha aproximação foi lenta, construída, elaborada. Fascinava-me o percurso de um mecânico de oficina que, desempregado, começou a escrever e de ignoto escriba, construindo um mundo mágico de personagens, chegou aos cumes do mais pungente humanismo. O Nobel não me impressionou nada. Havia muitos que o merecessem, tanto ou mais do que ele. Comovia-me sim a sofrida austeridade de Levantado do chão, o filigrana do Memorial ou a reinvenção de Cristo do Evangelho segundo Jesus Cristo . Depois, aos poucos, o desapontamento. A decrepitude. O esforço notório. O declive criativo. O azedume. E com a velhice irrevogável, a arrogância e o desconcerto.
Agora Saramago, que certamente nunca leu rigorosamente nada dos sessenta e tal livros que perfazem a Bíblia, expende preconceituosamente alguns dislates sobre a sua pretensa natureza de malevolência. Aceito o seu ateísmo. Mas isso nada tem a ver com o respeito pela natureza dos livros que a constituem, o seu significado cultural, o seu simbolismo intrínseco, o seu roteiro de leitura, a sua referência de civilização.
Saramago, ignorantemente, levianamente, estupidamente, tenta passar por cima de milénios , esquecendo que muito depois de os seus livros e as suas ideias serem apenas pó, se continuará a ler, a citar, a comentar, a reflectir sobre a Bíblia.
Pela razão simples de que a Bíblia é o espelho perene da própria natureza humana.

sábado, 17 de outubro de 2009

Out


As vozes tornam-se de súbito mais contidas, sussurros, olhares. O estridor do doente sobrepõe-se, num fundo permanente. O monitor apita. Tudo se dilui, como se as dimensões físicas do quarto se alterassem. Pequenas coisas assumem agora um significado diferente: o pequeno rádio portátil, as chinelas, o relógio de pulso, a fotografia sobre a mesa de cabeceira. As enfermeiras movem-se silenciosamente. Alguém folheia o processo clínico com murmúrios indefiníveis. Ao longe ouve-se a televisão, o desafio de futebol. O doente procura uma posição talvez mais confortável. Olhos cerrados. O corpo abandonado, roxo, exausto. As unhas dos pés compridas. Os movimentos respiratórios abrandam, num esforço irremediável. Um longo suspiro, sob a máscara de oxigénio. O silêncio depois. As pequenas coisas em cima da mesa. Esquecidas.

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

Um rosto de lado


A visita médica, rápida, passou por ele na recuperação. Olhar inquisitivo, pensos um pouco repassados, drenos, uma traqueotomia. A rotina. Quarenta e poucos anos de idade. O cabelo precocemente acinzentado destacando-se na almofada. As mãos estendidas ao lado do corpo. Esboçou um sorriso. Eu tinha-o visto na consulta, com a mulher. Explicara-lhe a extensão da cirurgia, a gravidade, a mutilação. A dificuldade em comunicar. O prognóstico. Aceita ser operado? Dr. claro que aceito. Eu tenho dois filhos.

Depois, na enfermaria, o lugar da cama vazio. Como um alvéolo de solidão.Um devir. Sobre a mesa de cabeceira, dois retratos. Um de quatro cabeças juntas num momento de alegria, todos abraçados. Talvez uma festa das férias passadas. Outro com o braço sobre os ombros do miúdo,decerto o filho, ao entardecer, sentados na areia da praia. Uma praia deserta. Um olhar que se alonga sobre um previsível mar ali à sua frente. Como uma grande interrogação. Talvez um sonho interrompido.

sexta-feira, 9 de outubro de 2009

Vou

A VIAGEM - Gil Teixeira Lopes, óleo sobre tela

vou até aonde as palavras me levam vou definitivamente pelas palavras fora experimento tudo o que me dão nesse caminho com avidez e por vezes com fúria não olho para nenhum lado não imagino nada tudo é directo imanente cru bruto como o sexo ou a morte não me detenho em nada que não seja o gozo a liberdade e a revolta nenhuma forma me contém nenhuma força é maior que essa seja vulcão torrente ou vaga nenhum deus me comove ou me cega nada é maior do que as palavras que me levam e sobre as quais me sento como num cavalo alado ou num touro que experimenta a minha força vou até onde as palavras me consomem me devoram num derradeiro banquete de sangue vou até ao mistério final das palavras

Outubro de 2009

sexta-feira, 2 de outubro de 2009

Salmo

A FUGA
Mário Eloy (1938-39) - óleo sobre tela 100x80 cm
Centro de Arte Moderna Dr. J. Azeredo Perdigão - Fundação Calouste Gulbenkian



Salmos 139:16
Os teus olhos viram a minha substância ainda informe e no teu livro foram escritos todos os dias que foram ordenados para mim, quando ainda não havia nem um deles.


não estou bem certo (passado tanto tempo) se me recordo
da tua voz, por vezes parece-me ecoar como um lamento
outras como um afago talvez mesmo uma dolorosa evocação
houve dias em que nem podia escrever
o mundo debruçava-se sobre o meu ser
ou talvez fosse o meu corpo entorpecido
que lentamente se descarnava
num ritual
tocavam-me, eu sabia que me haviam exposto as entranhas
depois puxavam-me para uma luz informe
num gelado silêncio
cuja memória me emudece
era um corpo só e desventrado
e a tua voz ecoava sobre ele
entrava nele , numa temível posse

Pedro Saborino

Setembro de 2009

quarta-feira, 30 de setembro de 2009

segunda-feira, 28 de setembro de 2009

Não me desiluda





Na verdade, que estranhas são as vielas da cidade da dor,
onde, no silêncio falso, feito de tumulto,
com violência e bravata, o vazadouro sai do molde do vazio:
o ruído dourado, o monumento que explode.


X Elegia de Duíno , R.M. Rilke



Não me desiluda dr. , dizia, as mãos contorcidas, o olhar anguloso.
Conheci aquele olhar mil vezes , reconhecê-lo-ia ainda entre mil outros, a pergunta que fica
suspensa sem resposta, parada entre o tudo e o nada.
Não me desiluda – eu sei que me pode curar. Na face, a chaga do tumor patente como uma
abominação. Várias cirurgias, radioterapia, esperanças, depois o nada. Veio procurar-me na
esperança de uma cirurgia salvadora. Sr. F. eu não posso curá-lo. Vou tentar reduzir o tumor,
vou fazer o que for possível, mas não posso curá-lo. Dr. eu sei que pode. Não me desiluda.
E segurava-me no braço enquanto, de lado, a filha dizia que sim com movimentos da cabeça.
Sr. F. a última TAC não é nada animadora. Há vários focos de tumor. Dr. o senhor vai conseguir,
eu sei que vai conseguir.
Mas eu sabia que não ia conseguir.

quinta-feira, 24 de setembro de 2009

Poema de amor



deixa-me pensar como eras antes
as minhas palavras secam-se antes de te descrever
não sei mesmo como te diria
se pudesse por fim ver o teu rosto
entre milhares de poemas verdadeiros
onde te nomeio, como uma invocação ou como uma infinidade

deixa-me revelar-te a curva dos dedos
o olhar talvez inquieto , os silêncios, a respiração
sobre os lábios como o meu corpo agora dormente

vou para além, até onde o poema me leva
o sussurro das árvores junto ao mar diz-me que já é dia
e em breve tudo se revelará
as vozes levantar-se-ão do seu torpor

deixa-me sentir –te neste momento breve
do fim da noite em que tudo se suspende

Setembro de 2009

sábado, 12 de setembro de 2009

Nostos


Voltou Jorge de Sena à terra donde partira um dia, ressentido, amargurado, descrente, inquieto. Inquietude que, no exílio lhe agigantou a obra.
Mas terá valido a pena? A terra continua mesquinha e vil, sombria, incerta. Eternamente adiada.

Ode para o Futuro

Falareis de nós como de um sonho.
Crepúsculo dourado. Frases calmas.
Gestos vagarosos. Música suave.
Pensamento arguto. Subtis sorrisos.
Paisagens deslizando na distância.
Éramos livres. Falávamos, sabíamos, e amávamos serena e docemente.
Uma angústia delida, melancólica,
sobre ela sonhareis.
E as tempestades, as desordens, gritos,
violência, escárnio, confusão odienta,
primaveras morrendo ignoradas
nas encostas vizinhas, as prisões,
as mortes, o amor vendido,
as lágrimas e as lutas, o desespero da vida que nos roubam
- apenas uma angústia melancólica,
sobre a qual sonhareis a idade de oiro.

E, em segredo, saudosos, enlevados,
falareis de nós - de nós! - como de um sonho.


Jorge de Sena, in 'Pedra Filosofal'

quarta-feira, 2 de setembro de 2009

A peste




Mas a religião do tempo da peste não podia ser a religião de todos os dias e se Deus podia admitir, e mesmo desejar, que a alma repouse e se rejubile nos tempos de felicidade, desejava--a excessiva nos excessos da desgraça. Deus concedia hoje às suas criaturas a graça de colocá-las numa desgraça tal que lhes era necessário reencontrar e assumir a maior virtude, que é a do Tudo ou Nada.
Paneloux afirmou ao seu auditório que o que iria dizer não era coisa fácil – que era preciso querê-la, porque Deus a queria. Os tumores que se formavam eram o caminho natural por onde o corpo rejeitava a infecção......e diziam “Meu Deus, dai-nos tumores”, o cristão saberia abandonar-se à vontade divina ainda que incompreensível. O mal era enviado por Deus.
”Meus irmãos”, disse por fim Paneloux, anunciando que ia terminar, “ o amor de Deus é um amor difícil. Ele pressupõe o abandono total de si mesmo e o menosprezo da pessoa. Mas só ele pode apagar o sofrimento e a morte das crianças, só ele, em todo o caso pode torná-la necessária, pois é impossível compreendê-la e não podemos senão desejá-la. Eis a difícil lição que desejava compartilhar convosco. Eis a fé, cruel aos olhos dos homens, decisiva aos olhos de Deus de quem é preciso que nos aproximemos. Diante desta imagem terrível, é preciso que nos igualemos.

Albert Camus, A Peste 1947


Nesta dança da morte não queremos o deus

da misericórdia não queremos voltar ao irremediável

porque não tememos a dor nem o desconhecido

não queremos voltar a ser a imagem da inquietação

Invocamos-te, divindade, para te dizer : não te queremos

há muito que não somos escravos, que libertámos a vontade

que defrontámos o teu rosto para te mostrar os nossos olhos

desafiadores, a nossa boca que proclama a liberdade

os nossos braços que derrubaram as grades

das tuas prisões milenares

Pode a tua voz rugir sobre nós, desferir o raio, lançar o medo, o opressivo manto da guerra

que nada nos fará calar

Nesta dança da morte que há muito deixámos de temer


2 de Setembro de 2009

sexta-feira, 28 de agosto de 2009

Ao fim da tarde, com Bernardo Soares (II)


Ao fim da tarde, com Bernardo Soares (II)

Notei-lhe um fino tremor das mãos enquanto acariciava os bordos da pasta. “Mas antes deixe que lhe fale um pouco de mim. Não tenho propriamente uma história de vida para lhe contar. Também não sei se isso será importante. A minha mãe morreu quando eu tinha um ano e claro que não me lembro dela. O meu pai sei que se matou quando eu tinha três anos, mas na realidade nunca o conheci. Fui criado em Lisboa por uma tia materna. Uma tia austera. Tinha entretanto enviuvado e vivia de uma pensão do marido, que fora militar, e de trabalhos de costura que fazia para fora. O meu tio coxeava da perna esquerda devido a um ferimento antigo. Morreu cedo, com uma apoplexia. Lembro-me dele nessa tarde de cara roxa e inchada, agarrado à garganta, num estertor a que assisti aterrorizado sozinho com ele em casa. Aprendi muito cedo e rápido a ser severo, conciso e reservado. Não falava com vizinhos e tudo se passava num tom baixo de voz. As refeições eram a horas rigorosamente certas e nunca falávamos. As luzes eram apagadas às dez da noite. Acordava-se às seis e meia da manhã. Lembro-me do relógio de parede e das suas badaladas nervosas, de timbre metálico. Com elas acordava e me deitava”. Por instantes desviou o olhar e pousou a pasta preta sobre a mesa. Procurou no bolso do casaco o pacotinho de tabaco e com vagar foi enrolando um cigarro que depois acendeu, deitando entre os lábios uma baforada de fumo denso e acre. “Como vê não tenho uma história muito interessante para lhe contar. Vivi com a minha tia Lucília no 3º andar de um prédio da rua da Madalena. Era uma casa grande com cinco divisões,um longo corredor, uma cozinha com bancadas de pedra e uma despensa na qual me costumava fechar por vezes para me esconder. Na traseira tinha uma varanda que dava para as varandas de outros prédios e onde via os estendais de roupa o que por vezes era a minha única distracção. A única talvez não porque muitas vezes ali me sentava a ler, sobretudo Cesário. Como sabe a rua da Madalena é bastante tranquila e eu gostava, como ainda hoje gosto, de sair e descer até à rua da Alfândega e à rua do Arsenal para olhar as pessoas, os carros, o movimento. A minha tia morreu há seis anos. Passava longas horas a fazer paciências e por fim tinha muita dificuldade em andar, pelo que já não saía. Tinha algumas visitas de vizinhas que depois foram espaçando e eu próprio que já andava na Escola Comercial não podia estar muito tempo junto dela. Morreu sentada na sua cadeira da sala, sem qualquer agonia, indiferente e plácida”.

quinta-feira, 27 de agosto de 2009

Ao fim da tarde, com Bernardo Soares


Naquele dia chuvoso de Setembro, que prenunciava um Outono sombrio, descia a Rua Nova do Almada a pensar no bilhete que me tinham deixado na porteira. Queria falar comigo e mostrar-me uns escritos. Uma letra minuciosa, caligráfica, alongada. Alguém lhe dera o meu endereço certamente nalguma tertúlia.
Depressa alcancei o largo de Santos e daí, estugando o passo, a rua de S. Paulo, já sob uma bátega violenta. Quando deparei com o número escrito no bilhete encontro uma porta esconsa de pensão, que nada faria adivinhar não fosse a tabuleta “Pensão Ideal- Almoços e Jantares”. Ainda de rosto molhado entrei no vestíbulo, com um chão de pedra e quase sem luz, e rapidamente subi ao primeiro andar. Uma porta pesada, de um verde já pintado há muitos anos. Dentro ouviam-se algumas vozes, quase em sussurro. O botão da campainha não funcionava, pelo que decidi bater.
O ralo da porta abriu-se e percebi um brilho de óculos que depressa se transformou num “Quem é?” enrouquecido. “O sr. Bernardo Soares está?”. “Está sim. Eu vou abrir”.
Após o ruído do trinco, a porta abre-se para uma saleta de paredes pintadas de azul desbotado e um corredor longo com vários quadros antigos pendurados na parede, ao fundo do qual, à direita se percebia existir uma sala de onde provinham as vozes.
“O sr. Soares está na sala ao fundo”. Ao meu encontro vem um homem magro, vestido com um fato cinzento escuro, gravata azul de nó fino, rosto anguloso no qual se destacava um olhar inquiridor, talvez inseguro, mas persistente. “Sr. S. quero agradecer-lhe o incómodo de ter vindo. Muito desejava a sua vinda. Queira fazer o favor de entrar”.
Conduz-me em passo apressado para um cadeirão da sala, sob um candeeiro que naquele fim de tarde outonal espalhava uma luz cérea. Em redor uma mesa baixa coberta com um naperon de renda. Ao canto um tripé alto suportava uma vaso com gladíolos amarelecidos. Sobre uma das paredes uma velha pintura campestre com um moinho. Do lado oposto uma fotografia de um militar com bigodes retorcidos e a mão direita apoiada no punho do sabre.
Bernardo Soares apagou no cinzeiro um cigarro de tabaco de onça e, sentando-se na cadeira à minha frente, começou por dizer que, sendo ajudante de guarda-livros num armazém de mercearias da rua de S. Julião, tinha ouvido falar de mim numa conversa de café, mais exactamente no Martinho. Que apreciava muito os escritores do Orpheu e que ele próprio também escrevia. Retorqui-lhe que os escritos do Orpheu não eram senão para alguns e, com espanto meu, disse-me que ele era um desses alguns.
Nesse instante fixei melhor o seu olhar e descobri-lhe uma profunda inquietação, uma terrível mistura de perguntas sem resposta, de contradições e de vazios. A chuva batia fortemente na janela da sala e ouviam-se vagamente alguns carros na rua. “Sr. S. eu tenho aqui alguns cadernos de escritos meus que gostava de lhe mostrar”. Abriu uma gaveta no móvel ao seu lado e retirou uma pasta de cartão preto com elásticos.

quarta-feira, 19 de agosto de 2009

Duende


Nestas noites quentes de Verão, que apetece gozar até ao alvor da manhã, saio muitas vezes até Sevilha, deixando para trás um Algarve massificado onde muitos portugueses fingem que se divertem espojando-se na praia à torreira do sol entre um almoço de sardinha assada e um jantar de febras e vinho rasca.
A noite sevilhana tem, no Verão, um misterioso perfume de laranjeiras que suaviza o bafo mediterrânico do levante. De repente as luzes tornam-se amareladas, os jardins povoam-se de misteriosos recantos com secretos rumores, as vielas do bairro judeu enchem-se de uma multidão que transborda dos bares num vozear interminável , os pátios fecham-se em mistérios de antigas lendas mouriscas, evola-se o canto de lamentos que se perdem na memória do tempo entre batidas de palmas.
Canto que se prolonga depois pela noite em vários tablaos , alguns para turistas, mas um ou outro com programa mais profundo. Entrego-me fascinado a esta viagem que nos leva perto de alguns segredos indecifráveis. Desenham-se figuras, reinventam-se ritmos, forjam-se emoções, num inexplicável tempo que as escalas sincopadas das guitarras, as palmas, o sapateado, tornam numa vertigem . Os dançadores têm uma pose demiúrgica que recria o eterno mito da paixão mortal, um sentimento trágico da vida, eros e tanatos.
Impossível não lembrar Lorca. E esse indefinível duende.

terça-feira, 11 de agosto de 2009

Dos cinco sentidos


Dos cinco sentidos:
Perguntar se vio, ou ouvio, ou cheyrou, ou palpou, ou gostou algua cousa defendida sopena de peccado mortal : ou porisso peccar mortalmente, ou le pos a sy, ou a outro em algu perigo probavel de peccar mortalmente , ou deixou de comprir algua ley que obrigau a mortal, Ou fez notavel damno da alma, saude, honra, ou fazéla da do proximo, ou da alma, ou saude de si mesmo.
in Manuall de Confessores & penitentes, p. 498, MDLX.

segunda-feira, 10 de agosto de 2009

A mão da gruta de Chauvet


As fascinantes pinturas rupestres da gruta de Pont d'Arc, no Sul de França, a maior parte das quais com cerca de 30 a 32 000 anos ( mais antigas portanto que as da gruta de Lascaux), incluem para além de um grande número de figuras animais de comovente realismo, a imagem em negativo de uma mão direita. A mão do artista, se entendermos por artista o criador da imagem e, ao mesmo tempo, o indutor do seu significado.
Porquê a mão? Porquê esta linguagem nova? Esta incursão no terreno do sagrado, no recinto ritualizador da hierofania?
A gruta, povoada de representações animais que o quotidiano apresentava ao caçador, fonte da vida e da sobrevivência, era decerto a imagem do seu microcosmo, fora do qual nada mais existiria que a competição selvagem e porventura o caos.
Podemos imaginar um sentido mágico nesta mão - o ponto de encontro do concreto com a estrutura organizadora do pensamento humano, como referia Lévi Strauss. A observação meticulosa da realidade incluia em si mesma o seu princípio e a sua interpretação. A sua significação seria a forma de intervir no real. A mão o seu agente.
A mão que caça, que come, que faz, que mata, que ritualiza enfim - a mão que transcende a função para se tornar no instrumento da divindade. A mão criadora. Que pinta, que inventa, que acaricia, que escreve.
A mão que cura.

quinta-feira, 6 de agosto de 2009

A blogosfera




A blogosfera é o reino do efémero. E também o da imaterialidade. E também o da abrangência.E também o da ilusão.

Nela cabem a discussão sobre o repolho do quintal e o grande arroto metafísico do filósofo em fim de carreira. A erotogénese das mamas da vizinha e o lúbrico mundo do geronte voyeur. A introspecção da matrona reformada que tecla o sexo nas tardes mornas e o cavalo voador da mais desconformada paixão. Cabem o político do discurso e o discurso sem política, o tom bom e o bom tom, o mau hálito da velha (política) consumida escatologicamente, massificadamente, redundantemente, prostituidamente.

Cabem o texto e o contexto, a canção e a cantada, o toque e o apalpão, o botox marado e o nariz refinado, a dama e a madama, a coxa e a pernama.

Cabem o sacrílego, o sarcástico, o satânico, o salamizador, o exterminador, o purificador. O eterno e o finito. O divino e o profano. A verdade e o cenário. O sim e o não. O pois sim.

Vale tudo na blogosfera. Se está vivo, faça-se morto. Se morreu , revivifique-se. Desanque-se, desmonte-se , componha-se, cuspa-se, dispa-se, desfaça-se, invente-se. Se. Se puder, poste-se. Na posta. No posto. Composto. Recomposto. Descomposto. Indisposto. Satisposto.
Génios e imbecis. Sensatos e insanos. Mais imbecis que génios, obviamente.


Morra a blogosfera! Morra ! Pum!


Homenagem ao Carlos Mota de Oliveira, autor de LOGO, EM PORTO FORMOSO

terça-feira, 4 de agosto de 2009

Bernardo Santareno (1920-1980)


Falar de Bernardo Santareno é falar daquele que poderá ser considerado o maior dramaturgo português da segunda metade do século XX.
Médico, licenciado pela Faculdade de Medicina de Coimbra em 1950, psiquiatra. Filho de um republicano convicto, que o resgatou ao seminário por " preferir vê-lo morto a ser padre". Entre 1957 e 1958 acompanhou como médico a frota bacalhoeira nas campanhas de pesca do bacalhau, experiência que lhe serviu de base para as peças "O lugre" e "A promessa".
Numa época em que o regime salazarista perseguia toda e qualquer voz discordante, Bernardo Santareno foi uma vítima da repressão e muitas vezes silenciado. A sua notável peça "A promessa" foi retirada de representação por influência do reaccionarismo eclesial de paróquia associado ao obscurantismo do regime.
A sua militância política passou pelo MDP/CDE e pelo Movimento Unitário dos Trabalhadores Intelectuais.
Se a sua matriz estética foi o neo-realismo, a sua genial criatividade evoluiu da afirmação de uma pujante linguagem poética quase naturalista para um registo épico, brechtiano, mas sempre de uma peculiar ênfase, que revive a tragédia grega nos seus momentos de maior universalidade.
De um primeiro ciclo em que se incluem "A promessa", "O bailarino", "A Excomungada","O Lugre" , "O Crime da Aldeia Velha","António Marinheiro", "Édipo de Alfama", "O Duelo", "O Pecado de João Agonia"e "Anunciação", Santareno passou a uma fase de um intervencionismo político em que se destacam "António José da Silva o Judeu", "O Inferno", "A Traição do Padre Martinho" e sobretudo " Português, Escritor, 45 anos de idade", esta já depois do 25 de Abril e que constituiu um marco na literatura dramática portuguesa dos últimos 50 anos.
Das sua últimas quatro peças publicadas em 1979 sob o título "Os Marginais e a Revolução" ressalta a problemática do preconceito face à liberdade de opção, a discriminação e a mentira social, numa perspectiva que desmascara a sociedade portuguesa no seu conservadorismo e na sua hipocrisia.
Muito além do seu tempo, muitas vezes atacado e outras tantas ignorado, Bernardo Santareno é uma figura gigante do panorama intelectual português que aqui evoco, com toda a justiça.

quinta-feira, 30 de julho de 2009

Um deus iníquo



A primeira vez que o vi pareceu-me um homem ainda mais pequeno do que na realidade era, de passos curtos, olhos mortiços, um abandono de quase indiferença. Vinha por um tumor no pescoço que havia algumas semanas o atormentava, duro, inflado, estranho. Trazia consigo a mulher, de falas vibrantes, aquele sotaque de fronteira meio espanholado. E uma história obscura. Uma manhã, por desvario, desfechara no crâneo um tiro . Um tiro de que guardava , perto do cerebelo, a irremovível marca. Um projéctil que a cirurgia não conseguira remover. Mas que não lhe roubara nem a vida, nem o tino. O que R. já aceitava como um sinal da providência. Uma benesse.
Operei-o. Durante um par de anos o tumor não deu sinais. Por vezes trazia-me umas chouriças de porco preto, como que de festejo. Depois , um dia, em surdina, começou a tolher-se-lhe a marcha. Os passos tornaram-se vacilantes, caía, tremulava. Pensou-se que fosse da bala. Não era. Era uma coisa neurológica, degenerativa. Irreversível.
De semana em semana R. piorava. Passou à cadeira de rodas. O rosto ensimesmado, a fala presa. De repente deixou de engolir. Nada lhe passava pela goela. Teve que ser intubado. As análises não estavam bem. A hematologia desencantou algo estranho. Um mieloma. Fez quimioterapia.
R. emagreceu ao limite. Ficou esquálido, inerte, de olhos vidrados. Um dia sangrou da boca, uma hemorragia estúpida. Abra lá a boca sr. R. Um tumor, um maléfico tumor da gengiva que o excruciava já de cheiro e dores. Foi de novo operado. Uma cirurgia miserável, mutilante, de incerto fim. Mais uma traqueotomia. Mais tubos. Mais angústias.
Mas R. conseguia por vezes sorrir. Os olhos, cada vez mais pequeninos, brilhavam no fundo de duas covas orbitárias. E levantava os polegares. Na sua cadeira de rodas.
A semana passada R. voltou. De língua inchada, disforme. Tinha uma recidiva. Inoperável.
Vou amanhã despedir-me dele. Vai para uma unidade de cuidados paliativos.
Com a bala dentro do crâneo.

sábado, 25 de julho de 2009

Maria Madalena



Saramago revisita, no seu Caderno, o tema de Jesus e Maria Madalena http://caderno.josesaramago.org/2009/07/24/um-capitulo-para-o-evangelho/.
Longe de uma complexa trama teológica e de uma porventura inútil discussão sobre a divindade e a incarnação, Saramago converte em serenas palavras a imagem de um ser sensível ao amor. Um amor carnal, directo, desnudado. Como pode ser o amor. Visível e provocante. Humanizado. Transgressor.
Revelação e ascese.
E recordo aqui Maria Gabriela Llansol em Amigo e Amiga:
"Mas como é possível não tocar quem se ama?", pergunta o meu corpo, pois acordei , neste dia de chuva, banhada numa tristeza que se converteu em lágrimas e numa
profunda nostalgia do tal luar quando nós vimos dele, ou corremos para ele.

segunda-feira, 20 de julho de 2009

O Caderno de Saramago


Tal como Saramago cita no frontispício de "O Ano da Morte de Ricardo Reis" (de resto o meu romance preferido de toda a sua obra) - "Sábio é o que se contenta com o espectáculo do mundo".
Mas Saramago não é só espectador. É interveniente. Sem ser juiz. Sem cosmogonias. Sem preconceitos.
Saramago reinventou a humanização da escrita, de comovente legibilidade. A história flui, como que projectada, e o autor constrói a sua utopia sem violar a realidade que ali se apresenta, tensa, tangível, tantas vezes descarnada, mas sempre próxima.
Leio Saramago com o mesmo espírito com que ouço os últimos quartetos de Beethoven - certo da sua intemporalidade, numa humilde descoberta, sempre renovada, do mundo e das coisas.
Escritor quase compulsivo, brindou-nos de alguns meses a esta parte com um Caderno -blogue, no qual exprime as suas ideias no fluir dos dias. Notável. Agora em livro. A ler.

domingo, 19 de julho de 2009

Graça Morais




Já aqui falei de Mestre Gil Teixeira Lopes, natural de Mirandela. Hoje vou evocar outra figura maior das artes plásticas, também de origem transmontana - Graça Morais.
Graça Morais nasceu no Vieiro, concelho de Vila Flor, em 1948. Aí mantém o seu atelier e nele
tem produzido uma boa parte da sua obra.
Paisagem física e humana da Terra Quente, que remete para o "Reino Maravilhoso" de Miguel Torga: "Léguas e léguas de chão raivoso, contorcido, queimado por um sol de fogo ou por um fio de neve (...) terra de homens inteiros, saibrosos, que olham de frente e têm no rosto as mesmas rugas da terra".
Quando a determinada altura voltou às suas origens no Vieiro para reflectir , trabalhar e amadurecer ideias, recusando até alguns projectos, dizendo " Ainda não resolvi tudo em Trás-os-Montes", reafirmava as suas raízes profundas. Ancestrais, como a família do Freixiel. A sua oficina - cabaninha, como lhe chama - adega agora transformada em estúdio, quase primitiva, é o recinto mágico da transfiguração. Mitologia de formas antiquíssimas que Graça Morais redescobre e fixa em cores, gestos, rostos. Por vezes trágicos, por vezes inquiridores, por vezes subtis e inocentes. Um universo único, diálogo com a memória, onde todos os seres adquirem uma surpreendente e por vezes visceral pujança.
Figuras e rostos de hierático dramatismo, que parecem ligar-se à terra- mãe, num processo tão lucidamente descrito por António Alçada Baptista "como um itinerário de purificação do Eu e, de certo modo, da própria história onde nascemos".
A pintura de Graça Morais é reflexiva, apaixonantemente melancólica. O seu percurso estilístico assume por vezes ( sobretudo na fase de 80, do retiro no Vieiro ) uma expressão de inusitada violência em que a mulher- vítima tem um papel desafiadoramente central , com um realismo cru.
Na série "O Sagrado e o Profano" assume um perturbante cruzamento do fantástico com o erotismo, depois aprofundado na série " Erotismo e Morte", para mim o ponto mais alto da obra da pintora.
Percurso riquíssimo, que passa depois por retratos femininos marcados, firmes, matriarcais ("As Escolhidas") e mais recentemente por essa magnífica "Memória da Terra", obra de maturidade absoluta, comovente, rostos de uma velhice sofrida, mas sem revolta , como que aguardando a morte.

sexta-feira, 17 de julho de 2009

Invocação das almas



por estes dias lisboa é uma cidade inquieta
de paredes com sombras e uma crua luz que
vem sobre os ombros
como um escapulário
procissões de antigos rostos com órbitas vazias
defuntos e outros restos jacentes
numa tarde de tambores
arrastando as últimas gaivotas
que do rio sobem à colina
e resgatam uma fome milenar
miradouros vazios
desafiam o olhar num ritual de obscuras vozes
esconjuram demónios ocultos nas pedras
de diversos castelos sepultados

nesta cidade
onde rios serpenteiam abaixo dos pés
num frémito como a visão do grande maremoto
o espanto da súbita vaga

nesta cidade cresce por vezes o cheiro
da carne queimada
ouvem-se cânticos de redenção
de repente faz-se um silêncio sobre as
ruas, as praças emudecem e apenas chia a roda
na cave, com gemidos abafados de penitentes

Pedro Saborino
Julho de 2009

quarta-feira, 15 de julho de 2009

Um olhar



C. entra devagar pela porta entreaberta, pequenos passos, cabeça curvada. Um rosto anónimo. 87 anos ? Talvez , talvez. O nariz destaca-se no rosto, firme, recto. O olhar esquivo. Ou vazio? Atrás uma acompanhante do lar com um pequeno dossier de capa verde na mão. Dona C, então diga-me o que se passa. Um silêncio que me leva a dirigir os olhos para a acompanhante. Nada de exames? Quem a manda cá? Alguma carta? A senhora foi fazer uma TAC ao hospital de Santarém,mas não trazemos nada. Só este papel. Sente-se ali dona C. Um tumor pétreo do pescoço. A cabeça sempre pendente, olhos no chão. Mas não tem nada aí ? Nem um papel? Nada doutor. A mão palpa. Que mais virá hoje? Não vou poder fazer nada. Uma pedra . Um imenso nada. Tem dores dona C.? Não, não tenho . É impossível. Um tumor destes não pode deixar de dar dores. Dores terríveis. Dores excruciantes . Não, não tenho. Há quanto tempo tem isto aqui? Levanta a cabeça e finalmente cruzo-me com o seu olhar. Onde não encontro nada senão o vazio.
O vazio da dor que já não se sente. Da vida que é já só um esperar. Do abandono. Sem revolta. Mas com muitas perguntas.

terça-feira, 14 de julho de 2009

Ainda Manuel Alegre




No lançamento do livro Alma, referencial do seu imaginário de infância em Águeda, Manuel Alegre proferiu o que ele denominou de Explicação de Alma. A qual acaba por ser também a explicação da sua ligação ás origens. Essa terra única e irrepetível ou terra-todas-as-terras. Simultaneamente origem e forma, princípio e termo. Caminho e libertação.

Revejo-me neste texto, na explicação humaníssima do nostoi que nos habita e nos faz reconstruir com por vezes dolorosos fios a nossa identidade.


" (...) Seja como for, eu tinha de escrever este livro. Há livros que se fazem porque se quer. Há outros que se escrevem porque não pode deixar de ser. Foi o que aconteceu com Alma. Era a raiz e a matriz.

Muitas vezes, nas horas do exílio e da solidão, eu agarrava-me à memória, sobrevivia das minhas próprias raízes. Como Ulisses pensando em Ítaca perdida, também eu pensava num rio, numa rua, numa casa.

Não sei se alguém consegue voltar de um longo exílio. Não sei se alguma vez se volta verdadeiramente a casa. Nem sei tão pouco se alguém, a não ser, como na Odisseia, o fiel porqueiro de Ulisses, verdadeiramente nos reconhece quando voltamos. Talvez Alma fosse a única maneira de voltar à minha terra, à minha casa, ou a mim mesmo. Talvez a única forma de finalmente ser reconhecido pelos que já cá não estão, pelos que nunca me conheceram e pelos que só assim poderão saber quem sou. Ou quem não sou. Sabe-se lá."

Excerto da intervenção de Manuel Alegre no lançamento da 1ª edição de "Alma", Águeda, 19 de Janeiro de 1996.

segunda-feira, 13 de julho de 2009

Máscaras da Utopia



Foi apresentado no dia 10, na Fundação Gulbenkian, a obra Máscaras da Utopia do Prof. José Oliveira Barata. A obra retrata mais de 30 anos de actividade dos grupos de teatro académico ( período de 1938 a 1974), designadamente o TEUC, o TUP, o CITAC e os grupos de teatro de Direito e de Letras de Lisboa.
Centrado num período dominado pela política de silenciamento cultural do salazarismo, o livro apresenta o historial desses grupos de teatro, os seus percursos e os seus intervenientes.
Neste contexto histórico-político é salientado o papel da Fundação Gulbenkian no apoio aos grupos de teatro, quer na formação dos seus elementos, quer nas deslocações efectuadas, algumas delas fora do País. São ainda lembrados os Ciclos Gulbenkian de Teatro, que eu e outros do meu tempo de juventude tiveram o privilégio de fruir quase com sofreguidão, pois eram verdadeiros espaços de liberdade e de partilha.
Os grupos de teatro universitário, longe de serem elitistas e fechados sobre si próprios, eram uma escola de entreajuda e sobretudo autênticos focos de resistência à perseguição censória do regime.
Na ocasião o Prof. José Oliveira Barata ( que foi ele próprio membro do CITAC) apresentou um notável texto, que tomo a liberdade de citar:
http://caminhosdamemoria.wordpress.com/2009/07/11/%c2%abmascaras-da-utopia%c2%bb/

Nele se exprime de forma magnífica o papel demiúrgico da própria utopia que diversas gerações foram construindo, de uma forma que ele próprio designa de anónimo heroísmo da generosidade militante.

domingo, 12 de julho de 2009

Sophia e o Miradouro da Graça




Há poucos dias foi inaugurado no miradouro da Graça um busto de Sophia de Mello Breyner.


Uma justíssima homenagem. Num local que tem muito a ver com Sophia e com o seu modo de amar a cidade. Com o rio Tejo ao fundo e o casario a desdobrar-se desde o castelo o miradouro é um ponto de inspiradora visão .




Aqui fica um poema meu de homenagem a Sophia e que fala de Lisboa.







Revelação


os objectos declinam a luz
em iluminuras suspensas ao final do dia
quando a cidade se adensa por entre códices e rumores
fervilham sons nos recantos
e aves cruzam o espaço dos jardins agora prisioneiros das estátuas
há gente apressada pelas ruas
olhares, silêncios, palavras gretadas, gestos esquivos nos autocarros suburbanos
que fedem um suor magoado, espesso

o rio é agora só uma esquina
um passo
um eco que a noite inventa em naves ocultas
do passado
nas vielas onde ascendem cheiros do perdido império
jasmim, incenso, canela


por fim tudo ali se mostra
aos olhos cegos
numa beleza táctil que nem a morte sujeita, grandiosamente
à destruição do corpo e à temível presença dos anjos
incompletos

terça-feira, 7 de julho de 2009

Poema azul



Poema azul

renascia a flor de azul e dizia o canto
que subitamente sobre o manto
da manhã mais não via que o sereno azul
da flor e dos teus olhos
amada e flor de azul como tu eras

do mar a luz da madrugada
o gosto salgado e o profundo olhar
mais não sabia que muitos mares azuis
e azuis campos de flores
eram como do teu rosto a flor

e flor diria o teu corpo
tudo enfim te tocaria
no mais azul e despojado amor
numa detida espera sem retorno
numa flor azul por ti colhida

segunda-feira, 29 de junho de 2009

O direito ao rosto



Quando A. entrava na sala de espera da consulta as vozes baixavam de tom e havia sussurros.
A. tinha sido uma bela mulher. Um cancro da face, terebrante, insidioso, motivara já várias cirurgias . Cada uma mais mutilante do que a anterior. Até que, no limiar das drásticas decisões lhe fiz a "grande" cirurgia. A cirurgia transfiguradora . A da imagem nulificada, da proscrição, a sagrada ablação do mal, salvífica e necessária.
Mas, com a mão que desfere o golpe, lhe reconstruímos também o rosto. Um rosto então determinado pelos olhos vivos e inquiridores e pela boca, uma boca de lábio superior inerte. Entre eles um espaço, uma ideia de humano, uma forma a haver.
A. olhava todos de frente. Sem máscara alguma. Nunca. Os olhos brilhavam sobre a apreciação compungida dos outros. Uma sociedade selvática, crua de vazios e negações.
Foi entretanto ainda reoperada . Um sobressalto. Que mais fortaleceu a vontade de assumir um rosto. Não necessariamente o rosto original. Mas um rosto novo . Um novo nariz. Uma identidade física que nunca se negara no seu íntimo. Orgulhosamente .
Lenta e pacientemente começámos .
Desenhando um rosto.

sexta-feira, 19 de junho de 2009

Crónica da infância revisitada



Mão amiga ( que não quero revelar mas muito estimo) ofertou-me esta magnífica criação de Baptista-Bastos. Com um carinho que tudo diz da sua - ofertante- bondade e da sua perspicaz compreensão dos meus gostos.

Para além das suas estorinhas de compungente emoção.

Sucede que tenho por B.-B. um enorme afecto. Tão desinteressado quanto genuíno.

E, como ocorre quando o afecto é genuíno e desinteressado, a análise esmorece e o verbo flui , sem outro passo que o da generosidade.

Assim é com este conto, que porventura já não é conto, nem memória, nem verso, nem nada.

Apenas um traço, um rosto, ou muitos rostos e muitas vozes, uma aguarela como as que o pincel de Mónica Cid ali deixam , dentro dos nossos olhos.

Começa com um era uma vez de uma avó que nunca teve ocasião para se sentar e olhar o rio. Uma avó que o autor retrata de compleição baixa, rosto firme e vivência magoada e apreensiva.

Que interpelava o pai , beberrão, ossudo, bruto, mas de triste olhar, sobre o cuidar do filho. E de tudo sabia, num reportório de vivos e de mortos em que o bairro da Bica, onde habitavam, era cenário e foi memória de um mundo que B.-B. revive e refaz.

Um bairro de figuras reais, com um poeta de fechado rosto , esquivo, autor de letras para fado, e outras figuras, ciganos e surdos-mudos, boa gente que a avó lhe descobria para o mundo .

A avó da bolsa de quadrados de flanela de onde saiam umas moedas, um auxílio, um conforto, a bolsa mágica do afago."Tens sonhado um bocadinho por mim?" questionava a avó , que de livros pouco sabia, mas lia na natureza os sinais da eterna busca , como a maresia que do rio subia ás ruas . O rio , o rio eterno como o fluir universal das coisas. Como as putas verdadeiras e a descoberta do corpo, num sobressalto .
Uma avó sábia, pequena e sofredora, imensa e comovente no imaginário de B.-B. , que morreu num dia feriado, docemente, como um pássaro ferido, a olhar o neto.

terça-feira, 16 de junho de 2009

Fracasso


É por demais óbvio que a campanha do Partido Socialista para as eleições do Parlamento Europeu foi, mais do que decepcionante, um fracasso total. Fracasso que nem a militância do PS conseguiu disfarçar. Vital Moreira, independentemente do seu valor intrínseco como cidadão e como intelectual, foi sem dúvida alguma uma péssima escolha. Uma escolha que compromete de alguma forma, pela pálida imagem pública, discurso cinzento e falta de convicção, a própria imagem do PS neste momento tão crucial na definição de uma estratégia eleitoral para as autárquicas e legislativas de 2009.


Maria de Lurdes Pintasilgo, João Cravinho, António Vitorino e Sousa Franco foram de longe candidatos cabeças de lista mais intervenientes e mais brilhantes do que demonstrou ser Vital Moreira.


Do Congresso de Espinho saiu uma dinâmica estruturante com vista ao combate às desigualdades, exclusão e discriminações, de maior justiça social que alguma vez a direita oportunista e a esquerda demagógica e radical poderiam seriamente propor , dinâmica que a campanha socialista das europeias apenas palidamente reflectiu, se é que essa mensagem alguma vez atingiu o eleitorado.


Mais do que nunca os próximos e decisivos embates eleitorais farão prova da força e vitalidade da esquerda democrática e dos seus valores , face ao sinuoso discurso revivalista de uma oposição que se divide entre o magistério compungido da direita e a utopia gasta de uma esquerda que caça votos no descontentamento do eleitor, dando numa mão um nada e na outra uma ramo de coisa nenhuma.
Mais do que nunca há que dizer a verdade aos portugueses, fechar o balanço da hipocrisia e da ambiguidade, enfrentar o descontentamento e a desilusão, construir esperanças e horizontes - sem o que o sufrágio pode revelar-se calamitoso. Para nós e para as próximas gerações.
O abismo chama o abismo.

sábado, 23 de maio de 2009

Marcos Ana



Amigos, camaradas, hermanos, aquí estamos de nuevo, junto a vuestro duro silencio, para hablar por vuestras bocas enterradas. Ahora hace 70 años que perdimos la guerra, o que nos la hicieron perder los apóstoles de la capitulación. Y llegó “la paz”, la negra paz del franquismo, una red implacable de sangre y odio que nos apresó rabiosamente a todos los defensores de la libertad y la República.
“Sin diques quedó el llantoLos olivos ardiendo. Desgarradascon lívido espanto las palomas,y el toro seco del terror, allanadola paz de los hogares”.
España se convirtió en un campo de exterminio, en un oscuro paredón donde la máquina de matar trabajaba sin descanso. Miles de españoles eran conducidos como rebaños a las cárceles y a los campos de concentración, y otros directamente a improvisados mataderos, donde eran asesinados, tras haber sido torturados. Y después, la trágica parodia de los siniestros Tribunales franquistas, verdugos elegidos, que dictaron y ejecutaron vuestro fusilamiento. Desde su forzado exilio Rafael Alberti describía aquel tiempo:
“Miradla allí,la Muerte está en su casa.Se oye un ciego reloj de horas desiertas.Y hay muchas calles por donde nadie pasa,porque ya nadie puede abrir sus puertas.¡Cuidad que ni una sombra se despierteen esa triste Casa de la Muerte!”
Y ese genocidio duró 40 años. Y cayeron los mejores hombres y mujeres, o adolescentes como las 13 rosas. Se ensañaron con vosotros, por ser los más comprometidos en la lucha por la felicidad del pueblo. Pero no pudieron exterminar vuestro ejemplo, ni apagar el fulgor de vuestra sangre asesinada. Quisieron mataros y os multiplicaron; ahora sois eternos, formáis parte de la historia. Y viviréis eternamente en nuestro recuerdo y en el pensamiento y en el corazón de las generaciones venideras. Como escribió Pablo Neruda en su “Viaje al corazón de Quevedo:”
“Cuando la tiranía oscurece la tierra y castiga las espaldas del pueblo, antes que nada busca la voz más alta y cae su cabeza al fondo del pozo de la Historia. La tiranía corta la cabeza que canta, pero la voz, en el fondo del pozo, vuelve a los manantiales secretos de la tierra y desde la oscuridad sube por la boca del pueblo…”
Y así volvéis permanente a nosotros, porque todos los tiranos juntos con su siniestro poderío, con sus máquinas de matar, no valen lo que un minuto de vuestra vida, no pesan lo que una palabra nuestra y nunca podrán arrancaros de la memoria y del corazón de nuestro pueblo. ¿Cómo sería posible olvidar, como podría hacerlo yo, que conviví con vosotros en mis años de condenado a muerte, que compartimos el pan y el hambre y que a muchos os di, estremecido de dolor y orgullo, el último abrazo cuando ibais a enfrentaros a la madrugada final de vuestra vida?¿Y como olvidar el sufrimiento de vuestras esposas o novias, de vuestras madres que dejaron los mejores años de su vida pegadas como enredaderas humanas a los muros de las prisiones?
Hermanos, yo pude salvarme de aquel naufragio, después de 23 años consecutivos de prisión, pero vuestra muerte quedó para siempre abrazada a mi vida. Y al recobrar la libertad os llevé conmigo y golpeamos juntos las puertas del mundo exigiendo solidaridad para España y para sus hijos encadenados.
Y hoy, aunque parezca increíble, a los 30 años de democracia, tenemos que seguir luchando, con la triste autoridad de vuestra muerte y mi vida, para recuperar la memoria histórica, y para que se reconozca pública e institucionalmente nuestra lucha y vuestro sacrificio frente a la estrategia cómplice del olvido y los falsificadores de la historia.
Después de una Dictadura como la que sufrimos, que segó vuestras vidas y la de tantos y tantas hombres y mujeres, no podemos arrancar esa página de la historia para que se la lleve el viento del olvido. Hay que escribirla con el alfabeto del horror, para que esa tragedia que nos tocó sufrir a nosotros, no sea posible nunca más ni para nadie en España.Conocer la historia de ese tiempo atroz es el más valioso legado que podemos dejar a la juventud de hoy, y la mejor vacuna para proteger la libertad y el futuro de las nuevas generaciones.
Y en esta lucha, podéis sentiros orgullosos de vuestros hijos, de vuestros nietos y nietas, de vuestros familiares, que a golpes de corazón y perseverancia os han arrancado del olvido y están ayudando a construir el gran memorial de la resistencia antifascista.
Hoy, el colectivo “Memoria y Libertad”, al que ellos y ellas pertenecen, nos ha convocado para rendiros este homenaje. Y aquí estamos, junto a un jardín vertical de claveles rojos, erguido como un símbolo sobre las tapias del cementerio. No venimos a llorar vuestra muerte, aunque tengamos que apretar el corazón para evitarlo, sino a afirmar nuestra voluntad de llevar adelante los nobles ideales de vuestra vida.
Hermanos inmortales: sobre estas tapias, ayer salpicadas de sangre y hoy cubiertas de flores rojas, debierais grabar un breve testamento, con los versos que Alberti puso en boca de Juan Panadero:
“Me hirieron, me golpearon,y hasta me dieron la muerte,pero jamás me doblaron!”
Marcos Ana

domingo, 10 de maio de 2009

Gil Teixeira Lopes



Gil Teixeira Lopes vai inaugurar em 19 de Maio , na Casa Fernando Pessoa, uma nova exposição - Heterónimos - Ícones Enigmáticos.
Tenho o privilégio de conhecer Mestre Teixeira Lopes há vários anos e tenho por ele e pela sua obra uma profunda admiração .
Com ele compartilho a origem transmontana - que de resto não renega, antes enaltece. À cidade de Mirandela e a Trás-os-Montes doou grande parte da sua obra . A sua transmontaneidade transparece na admirável coragem física e no seu humanismo generoso. Da sua riquíssima experiência humana ressaltam a consciência, a ética e a estética, como bem disse Baptista-Bastos. O "coração do mundo ", uma criação que enraiza em modelos de rigor e se desenvolve em projecções de inquieta e infinita procura.
Teixeira Lopes tem uma vastíssima obra como pintor, escultor, desenhador, gravador, seguramente uma das mais profundas e representativas das artes plásticas em Portugal . Universal porque profundamente humana , universal porque inovadora e interpelante, universal porque exigente , a sua produção artística de há muito que adquiriu reconhecimento internacional.
Obra empenhada e interveniente, de uma pulsão genial, genesíaca, por vezes contemplativa , por vezes de frenética construção, não nos deixa nunca indiferentes. Antes transpõe o conteúdo íntimo para o espaço exterior , nas formas e nas cores, desafiando uma leitura participativa numa descoberta pungente da nossa própria qualidade humana.


sábado, 9 de maio de 2009

Investigação do cancro






A notícia veiculada pelo Expresso do investimento de dois milhões de euros doados pela Fundação Champalimaud para um projecto de investigação na área do cancro em parceria com três centros norte-americanos de reconhecida importância, vem chamar a atenção para a necessidade premente de incentivar em Portugal essa área científica.


A Dra. Leonor Beleza , Presidente da Fundação , refere o défice existente em Portugal e nos outros países da União Europeia em estudos sobre o cancro, particularmente na área clínica.

É um facto . Mas não pode deixar de referir-se o extraordinário trabalho que tem sido efectuado em Portugal , nas condições que se conhecem , quer em centros hospitalares, quer em centros universitários, muitos deles distinguidos internacionalmente. A produção científica portuguesa na área da investigação oncológica, traduzida em número e qualidade de trabalhos publicados em revistas qualificadas e indexadas, bem como o número de citações produzidas, não falando já nas comunicações em reuniões internacionais , é comparativamente com outros países europeus , notável. Sobretudo se tivermos em conta o número restrito de investigadores e de centros de investigação do cancro em Portugal.


Neste sentido é particularmente importante a notícia ( aliás já bem conhecida no círculo da investigação nacional e internacional ) da abertura e início de actividade em 2010 do maior centro mundial dedicado em exclusivo à investigação, prevenção e tratamento das metástases.


Dotado de uma dimensão invulgar e de uma localização privilegiada , em Lisboa junto ao Tejo, este novo centro vai constituir uma referência mundial, até pelo tipo de investigação monotemática que vai aí ser efectuada e necessariamente pela importância clínica da mesma uma vez que a metastização é um passo crítico da progressão tumoral. Centralizar esta actividade científica em Portugal denota uma grande visão de futuro e um grande respeito por todos os que em Portugal se dedicam à investigação a ao tratamento do cancro.

Sobretudo num momento em que a conjuntura determinou uma drástica redução de fundos para a investigação.

Terry Fox



Terry Fox , um canadiano de Winnipeg, tinha 18 anos quando lhe foi diagnosticado um sarcoma da perna direita. Foi-lhe então efectuada uma amputação pela coxa. Estávamos em 1977.

Durante o seu internamento no hospital Terry viu e conviveu com muitas situações oncológicas, algumas delas em jovens e crianças. O que lhe despertou o sonho de atravessar todo o Canadá em corrida como forma de despertar a consciência da população para o problema do cancro e também para recolher fundos destinados à investigação.

Chamou-lhe Maratona da Esperança.

Começou a sua extraordinária façanha a 12 de Abril de 1980 e ,correndo 26 milhas por dia , atravessou as províncias atlânticas do Canadá, Quebec e Ontario, num crescente de entusiasmo e emoção de toda a população canadiana e mundial.

No dia 1 de Setembro porém foi obrigado a parar. Tinha percorrido 5373 km. Foram-lhe detectadas metástases pulmonares.

Terry viria a falecer em 28 de Junho de 1982 com 22 anos.Pelo seu exemplo magnífico de coragem e abnegação Terry foi proclamado herói nacional do Canadá e constitui um símbolo inspirador para todos os doentes de cancro e todos os que se dedicam ao seu tratamento.

A Fundação que tem o seu nome recolheu até agora mais de 400 milhões de dólares para a investigação do cancro.

No Canadá e em todo o mundo .
A Corrida de 2009 em Portugal vai realizar-se no dia 16 de Maio pelas 8,30 no Parque das Nações em Lisboa.
Junta-te a nós!

quarta-feira, 6 de maio de 2009

Um mundo quase inabitável


Crise é apenas uma ideia. Cómoda. Não questiona nenhum sistema ideológico, nenhuma religião , não subverte nenhum pensamento político, não é desviante. Cómoda para o poder porque permite instituir a prática hipócrita das almofadas sociais , úteis sobretudo em períodos de escrutínio eleitoral . Cómoda para o sistema financeiro porque lava a imagem de cupidez e lucro sem moral, mantendo as mesmas regras com a vantagem de eliminar uns quantos aprendizes supostamente patetas mas perigosos . Cómoda para o patronato que , após ter exaurido benefícios e lucros das empresas despede em massa e sem réplica com a facilidade com que se desliga um computador . Cómoda para o empregador que busca e usa mão de obra fácil e barata . Cómoda para o arrivismo social que não olha a meios para alcançar os seus fins. Cómoda para a repressão e a intimidação . Cómoda enfim para o discurso irrisório da direita agora armada em consciência moral da sociedade .
Mas crise não significa mudança. Para existir uma mudança teria que mudar-se o curso da história , uma ruptura , um desafio incessante para um mundo novo e um homem novo. Que os políticos da globalização e os sacerdotes da missa de Davos devotos de Hayeck não podem nem desejam protagonizar.
Razão pela qual a crise, esta crise, é uma conjuntura cínica. De domínio da economia sobre a política social. E dos mercados financeiros sobre a economia. E do capital sobre o trabalho.
Porque os nababos das empresas e da finança podem ficar um pouco menos ricos. Mas os trabalhadores ficarão irremediavelmente na miséria. Presos numa jaula que não desejaram, nem foi por eles criada. Numa revolta mal contida.
Enfim um mundo quase inabitável para nós e seguramente inabitável para os nossos filhos e netos.

domingo, 3 de maio de 2009

Costa da Guia


Um final de tarde tranquilo daqueles que se alongam em frente dos nossos olhos até o céu se esbater do laranja vulcânico até ao roxo morno . Sem nuvens. Uns quantos melros e rolas saltitando. Ao fundo a linha do mar , para lá do farol.
O telemóvel toca mas eu ignoro-o . Talvez seja outra vez aquele meu amigo que suspeita ter a gripe nova e está preocupado. Ladra ali um cão e gritam uns miúdos na piscina duma das moradias.
Arrumo uns livros dispersos . O meu filho chega do Guincho com a namorada. Foram passear a pé.
Abro o meu Para Sempre, do Vergílio Ferreira.
"Para sempre. Aqui estou. É uma tarde de Verão, está quente. Tarde de Agosto. Olho-a em volta
na sufocação do calor, na posse final do meu destino. É uma comoção abrupta - sê calmo . Na aprendizagem serena do silêncio. Nada mais terá que aprender ? Nada mais . Tu e a vida que em ti foi acontecendo".
Ou a sempre evocada Maria Gabriela Llansol. O Amigo e Amiga.
" Hoje, terminei o meu ciclo do dia; e eu cavei energicamente a minha terra ; lancei-lhe sementes para o futuro ao prosseguir o rito da ressuscitação para os textos de Nómada
que se levantam em torno de um epicentro
que é uma Obra ___uma obra comum, exactamente como nós
somos uma mó inscrita nos dois lados".
O eterno devir.

terça-feira, 28 de abril de 2009

Maria Gabriela Llansol ou a reinvenção da escrita


Conheci Maria Gabriela Llansol há uns anos atrás em situação que me permitiu ir entendendendo alguns aspectos da sua complexa personalidade e especialmente o fulgor do seu génio criativo. Numa determinada fase da sua vida pessoal foi-me dado assistir de perto ao raro dom da soberana afirmação da palavra sobreposta à sua pungente fragilidade física, num desafio absoluto do espírito. Imagem que carrego na memória como um exemplo singular e que se afigura único em toda a minha experiência de vida.

Da sua escrita disse lucidamente João Barrento tratar-se de uma escrita-vida exactamente porque " nela se confundem a vida e a escrita, sem qualquer traço de confessionalismo : trata-se de um escreviver novo da parte de quem escreve e de um escreler único da parte do legente - pois ler Llansol é ler do lado da escrita e do lado da vida num processo nunca acabado (...)" .

Em Llansol a escrita redime e liberta , questiona e responde, revela o invisível que sempre esteve presente ( o olhar sobre o real desencadeia a visão do real a qual, no invisível, lhe corresponde - O Senhor de Herbais), o universo da imaginação que aglutina todos os seus livros. Enfim, uma escrita de mundos diversos, uma escrita da palavra pura e significante que acede à imagem , sem metáfora - " Escolhi o caminho de uma construção frásica que pudesse dar-me acesso ao mundo autónomo da imagem". Uma escrita que porventura reinventa a linguagem poética sem o saber.

Maria Gabriela Llansol não é, não foi , deste tempo ou deste lado do tempo. Eduardo Lourenço disse certa vez dela " Llansol será provavelmente o último grande mito literário do século XX, depois de Pessoa". Na verdade, a sua obra perdura e desafia de um modo intemporal.


27 de Setembro de 2002

Apago o desenho que já fiz - e as cadeiras estão vazias à volta da mesa. Apaguei as árvores que desenhara sobre o texto, mas elas permanecem erguidas pelas raízes nas cadeiras. O vento derrubou um copo de vidro e de papel. A brisa , agora feita vento, sopra.
(...)
Brilha, perto, aqui, sobre aqui - e sobre tudo -
a luz da vida.

Cadernos 2.63